Xicuembo (versão 3.0)

memórias & resmungos do Carlos Gil

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sexta-feira, outubro 28, 2005

Parker Rollerball

Mais um pingo de tinta, afinal é assim que não se pára e se constrói um blogue. Pingos, seja em chuveiro que nos faz correr links como num sprint com barreiras, para abrigarmo-nos da verborreica abundância, ou borrifos de gotas solitárias, daquelas que escolhem sempre para cair o vidro dos óculos embaciando-nos os olhares, as páginas, e lembrando-nos que precisamos de vista límpida para olhar além da curva que fica no fim da recta das bancadas.

É como aquela história da garrafa de vinho: o tinteiro está meio cheio ou meio vazio conforme as sedes que o olham. Saliva-se pelo escândalo e por desancadela da grossa? compra-se o jornal 'a' e lê-se o cronista 'b', bebe-se de trago; mas se os lábios querem sentir um refresco que os humedeça, a língua enrolando-se nos sabores que apreende, aí folheiam-se as ponderadas páginas de 'c', e relêem-se calmamente as frases de 'd'. As necessidades são como as sedes, não são iguais.

Já agora os tinteiros. Olho com admiração e uma dorzita no meio do braço aqueles que os esvaziam num ápice, e tenho visões de armários repletos de frasquinhos coloridos, tinteiros, como se fossem a despensa dum guloso, atulhada de pacotes de bolachas, frascos de geleias, mimos e mimos insaciáveis. Imagino-lhes o olhar de prazer enquanto a pena corre em tropel, olho no nível que vai minguando – o tal sempre meio vazio, com o pensamento já fazendo linha para nova incursão ao infindável stock. Como será bela a liberdade do assim rico, senhor de armários cheios de tinteiros cheios, torneiras que abrem e deixam delas correr dilúvios em pena larga...

Não sou um forreta nem me acho um somítico*. Gasto pelo que tenho e preocupa-me o vazio da despensa, buscando consolo quiçá enganador no olhar romântico que troco com o meu tinteiro, a quem sempre acho porte de meio cheio. Aqui na casa gasta-se tinta, sim, é blogue de parcimónias mas tento evitar que a frugalidade deixe secar a tinta, aguadilha do tal sempre meio cheio e que num descuido e num ápice se evapora, passará a dar razão àqueles que o olhavam como meio vazio.

Na despensa, alinhados e com os rótulos à vista, sobre a folha velha de jornal que forra a prateleira, estão frascos cheios, enormes, daqueles de azeitonas, cheios até à borda – e daí a folha do jornal que protege a prateleira de derrames. Comi as azeitonas todas e, de tinta, há um leve cheiro no ar mas o vidro mostra a sua transparência nublada; por detrás dos rótulos, alinhados, dos frascos arrumados por feitios e por tamanhos, o olhar desfoca-se cada vez mais enquanto os trespassa e vai de um a outro, os vidros sobrepostos tornando-se lente, ampliação do nada, alinhado, vazio também em azeitonas.
Mas é conforme o ângulo em que se olha, tranquilizo-me: se me puser de esgelha para olhar o enfrascado recheio do armário, essa mesma lupa que antes agigantava os tinteiros semi vazios, agora inverte-se de função e resultado, diminui os caroços imaginários que pululam atrás dos vidros dos frascos alinhados, enche o seu aparente vazio de transparências consistentes.

É o meu olhar que favorece o ângulo? encho tinteiros com tintas que são invisíveis, excepto à mão que agarra a caneta e, sabendo-a laboriosa, solta ais de prazer na dor dos dedos que a seguram, o olhar distraído com o papel vincado em linhas incontáveis, ilegíveis caroços do nada? meio vazio, afinal, meio cheio, afinal?

Atrás, lá para o meio do até agora escrito, titulei o post de ‘Parker Rollerball’. Bonito, achei-o próprio e ali está. Agora, agora que a tinta séca e lê-se melhor o vácuo pelos vidros dos tinteiros, folhas guardadas na despensa sobre uma outra dum jornal velho, talvez o ‘a’ talvez o ‘c’ (quem saberá em que embrulho vêem as azeitonas?), talvez apenas a folha velha dum blogue, agora penso em mudar o título. As minhas hesitações. “A despensa”; “os tinteiros e os frascos de azeitonas”. O título é muito importante, como sabem. É o flash, a imagem. Agora que a tinta seca repesco uma frase do princípio, “é como aquela história da garrafa de vinho: o tinteiro está meio cheio ou meio vazio conforme as sedes que o olham”, olho a minha despensa e fecho-lhe a porta, levanto mais os olhos e gabo a sagacidade do título: uma rollerball não precisa de tinteiros, precisa sim é dum armário farto em frascos que estejam cheios – conforme o ângulo, vi-os assim mesmo ainda há pouco, estava o tinteiro hesitante entre verter-se na sua função ou tansmutar-se em caroços de azeitonas.

(fez-me particularmente bem este post, segredou-me o blogue)
* Na caixa de comentários é-me feito o reparo do erro de grafia, assim como das possíveis implicações anti-semitas da utilização de 'somítico' em vez de 'semítico'. Encaixo o reparo, e lá me justifiquei.

6 Comments:

Blogger Vagabundo said...

E que segredo!!!!

Abraço Vagabundo
BFS

sexta-feira, outubro 28, 2005 10:38:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Não se diz "somítico". Esse termo não existe. Isso é uma corruptela oralizada do termo "semítico", ou seja quanto ao significante: "judeu". Associando, segundo a paranóia inquisitorial, um qualquer judeu a homem com posses, tio patinhas, agiota. Parecido a associar automaticamente laurentino a racista. Esse odioso, essa expressão, se assumida, só é própria de um anti-semita, caçador de judeus, um SS de Buchenwald ou coisa parecida.

sexta-feira, outubro 28, 2005 11:14:00 da tarde  
Blogger Carlos Gil said...

Caro anónimo: concedo-lhe que terá razão. Utilizei a expressão escrita como sempre a ouvi, falada; sempre longe desse significado, acrescento também. No sentido de 'avaro', 'agarrado' ao money.
A sua reacção, de tão crispada, indispôs-me. Ao de leve, muito ao de leve, endereça insinuações. Não gostei. Se tem algo a dizer(-me) diga-o claramente. Mesmo que não assine, isso não me rala tanto como o seu excesso na 'legítima defesa'. Mesmo se praticado com fundamento factual, ficaram por aqui coisas a bailar desagradáveis. Embora me conceda a dúvida, noblesse oblige, a verdade é que adianta classificações que são insultos para o caso das farpas serem encaixadas. Isso não é bonito, v errou.

sexta-feira, outubro 28, 2005 11:28:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vc não percebeu. O problema não está "em possíveis implicações anti-semitas da utilização de 'somítico' em vez de 'semítico'". "Somítico" é um corruptela de "semítico", mas o sentido é o mesmo, associar o povo judeu a um valor socialmente condenável e transportado racicamente por uma etnia - a avareza. E, historicamente, esse termo foi imposto na linguagem popular no tempo da Inquisição (tal como há quem diga "judiaria" quando uma criança faz uma maldade). Se tivesse usado semítico, seria mais preciso no léxico mas o ferrete racista seria o mesmo. E, desculpará, o uso deste termo por parte de um blogger consagrado e de grande audiência, no preciso momento em que o Presidente do Irão defende que se arrase o Estado de Israel, é, reconheça, uma infelicidade. E a um (excelente) escritor apoiante do grande Manuel Alegre, há coisas que não se devem desculpar, sem pelo menos, chamar a atenção. Se as dispensa, então terá sempre razão.

sábado, outubro 29, 2005 12:04:00 da manhã  
Blogger th said...

O estilo dos comentários parece-me familiar...entretanto encontrei isto, como sempre para tirar dúvidas vou à infopédia.
somítico

adjectivo


que revela avareza; mesquinho; forreta; sovina;



substantivo masculino


indivíduo excessivamente apegado ao dinheiro; indivíduo avarento;


(Do lat. semitìcu-, «judeu; avarento»)



© Copyright 2003-2005, Porto Editora.

sábado, outubro 29, 2005 1:29:00 da manhã  
Blogger Dinamene said...

Carlos, porra, sempre me irritaram as polícias, agora as da língua deixam-me desvairado.
É que sempre os senhores agentes demonstraram a sua ignorância, mas isso já é costume nas polícias.
Texto formidável... e mais não digo, tenho de policiar-me, não vá usar algum termo que ponha alguns povos semitas em pé de guerra...
Toca a sanear a língua!

sábado, outubro 29, 2005 3:11:00 da manhã  

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