Xicuembo (versão 3.0)

memórias & resmungos do Carlos Gil

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terça-feira, abril 26, 2005

O bilhete

Eram seis e tal da tarde e a noite caía embrulhada na chuva, que resistia naquele molha-tolos que não parava desde que as nuvens da manhã soltaram os primeiros pingos à hora do almoço. Atravessou a rua a correr, aproveitando a fila de carros que estava parada atrás do eléctrico que seguia o seu trilho interminável para lá da esquina., e entrou no prédio. A porta de mola metálica do elevador, umas escadas velhas, em madeira e com corrimão em ferro, as paredes orgulhosas do seu passado e fazendo lembrar cenário de filme antigo, histórias de crimes com detectives onde, em escadas assim, a mulher fatal troca beijos de traição e acelera desenlaces. Uma carpete gasta, puída no seu azul que fora marinho e o pó chamava de cinzento.

Viu logo a placa, veterana entre todas com um caixilho castanho numa bordadura discreta que ameniza o dourado gasto onde se lê o nome da firma, algumas letras já sumidas do seu negro formato. Recusou o elevador, longa torre que se ergue pelo prédio acima como se ele só existisse para a proteger ou esconder, as escadas como uma planta trepadeira que se lhe cola e a escala, e que ele foi subindo enquanto revia o que ali o levava, a sua missão. A mão procurou no interior do sobretudo o envelope e os dedos tocaram-no, tentando alisar as pontas amachucadas. Passou pelo primeiro andar onde uma lâmpada acesa sobre uma porta em vidro que diz “registos e patentes, documentação diversa” ilumina o vão fazendo as paredes ainda mais velhas ao expor as suas cicatrizes carentes de arranjo e pintura, e foi sob a sua deprimente luz amarela que alcançou o lance final para o segundo andar, seu destino. Ouviu o longo concerto de ruídos metálicos do elevador, o seu zunido irritante no silêncio das escadas, e interrogou-se se seria alguém a subir ou se teria sido chamado por alguém de cima. Nada de importante mas tudo o era quando estacou em frente à porta onde, no vidro martelado, se lia “tal & tal, contabilistas”, e pensou na sua missão. Vinha a pedido de Ofélia, quase que a seu mando, e a face dela não o enganara quando os seus lábios suplicaram pela urgência do recado.

Sacudiu das ombreiras do sobretudo os pingos que a bordavam em gotas brilhantes, e empurrou a meia-porta com o chapéu na mão. Raramente ali vinha e quando entrou o cenário era o mesmo de sempre, o grande balcão que ocupava toda a frente da divisão, ao fundo uma janela-porta, alta, por onde entrava a luz dos candeeiros da rua. Entre o balcão e os vidros onde a chuva insistia em bater, teimosa e insensível à sua barreira, duas secretárias com papéis apinhados, umas pastas de arquivo e uma grande máquina de calcular, conseguia ler-lhe o nome estilizado, ‘Remington’, com a perna fronteira do erre estendendo-se ao longo do resto do nome, assinatura dourada em contraste com o metálico negro baço do ferro onde a fina língua de papel que o rolo solta descai até morrer no soalho, em monte de contas e recontas. As cadeiras vazias, ninguém. As paredes da sala estão cobertas de estantes com grossos livros encadernados, e grandes caixas de cartão com o que parecem ser os documentos dos clientes pois todas têm um papel colado com o seu nome, e neles reconheceu a letra caligraficamente cuidada do Fernando. Tossiu de forma audível e ouviu-se um tap-tap de saltos altos, abriu-se a porta do lado esquerdo e uma rapariga elegante, cabelo castanho apanhado de lado com um gancho que não continha a rebeldia de um ou outro caracol, tudo a tornear uma cara bonita, lábios vermelhos e olhos de forte personalidade. Vestia um fato que lhe caía bem, num verde azeitona com as bandas do casaco e os punhos das mangas em bordeaux, grossos botões forrados na mesma cor deixando o último entrever o busto firme, e o vermelho que lhe subia dos lábios fê-lo ruborizar-se quando os seus olhos encontraram os dela, inquisidores, mais além do profissional e convenientemente agradável. Na escada o elevador parou de zunir e ouve-se outra vez o martelar metálico que o poço das escadas amplia. Ela sorriu e ele leu na pergunta “- que deseja?” a aprovação ao exame a que o submetera, e sorriu também, enquanto dizia boas-tardes e as sobrancelhas, contraídas inquisitoriamente, apontam para as secretárias vazias: “- olá… o Fernando…?”

A porta atrás abriu-se, também a mesma meia portada, e ele desligou-se dos olhos que prometiam mil feitiços e olhou a figura familiar do Fernando, magricelas para tanta gabardina, sempre o mesmo chapéu, sempre a mesma cara, os mesmos óculos. Vieram os abraços, ela sorriu e afastou-se para junto da janela revelando como a modista fora precisa e feliz nas medidas, acende um cigarro e olha o fumo que luta contra os vidros enevoados, nitidamente atenta à conversa que descaiu das trivialidades para a entrega do bilhete de Ofélia. Fernando leu-o e desmaiou. Mais tarde, quando as angústias amainaram via um lenço molhado que o fez sair do torpor e, depois, generoso golo da garrafa que uma caixa na estante ocultava e cujo segredo ela não hesitou em partilhar face à urgência, fomos lê-lo e dizia: “Meu amor, meu mais tudo, Fernando vate da minha vida: está cá em casa um frade, o Frei, e estou quase a converter-me pois os seus argumentos são poderosos e eu sou somente uma fraca pecadora. Ou arranjas um heterónimo à altura ou professo votos e tens de arranjar outra musa. Ofélia”

Ela leu, olhou para ele, ainda pálido e sem os óculos, que estava sentado à secretária com a cabeça entre mãos murmurando “- ele… ele não, por favor…”, e proferiu a sua opinião que soou como se de impiedosa sentença se tratasse: “- Ó filho, Fernandinho: já sabes que para o vaudeville podes contar comigo, e para o can-can também que até gosto. Agora para escreveres ordinarices e ainda por cima com padres à mistura, aqui a Françoise não atura taras artísticas a ninguém. Comigo, assim, não rimas. Fica-te lá com a tua Ofélia”

(crónicas secretas do Frei, volume da belle époque)

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sabes que conseguiste pôr-me a ver o filme? E também gosto de te ver a ensaiar textos com 'mais linhas'! _ beijo, muf'.

terça-feira, abril 26, 2005 11:00:00 da tarde  
Blogger th said...

Tinha que ter volúpias escondidas...lol e claro, a culpa é do Frei! delírios franciscanos...lol.
Beijo atrevido (hoje apetece-me)...lol,
th

quarta-feira, abril 27, 2005 12:17:00 da manhã  
Blogger None said...

Gostei da prosa...tem uma graça!

quarta-feira, abril 27, 2005 12:31:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Gosto de te ler
Um beijinho ao Freim um outro grande para ti Tareca

quarta-feira, abril 27, 2005 12:47:00 da tarde  

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