Eu, cronista
Na próxima semana sai a minha primeira crónica no jornal local. Para estreia entendi não escrever nada específico e mostrar uma peça já ‘velha’, o embalo das ondas no afago da capulana colorida que ao Sol africano rouba ao mar os seus mais lindos tesouros, as conchas e os búzios. Está no livro sob o título “a capulana e o mar”, lá para as últimas páginas, tendo sincera pena de nesta edição para jornal não ter ido a tempo de alterar alguma pontuação e partir ao meio uma ou outra frase, longas no descritivo que quis ornado de cheiros e cores. A final deste post fica a versão da correcção de hoje.
Iniciar a minha colaboração com uma crónica criada de raiz e sendo o primeiro texto o de introdução à coluna, entendi que me obrigava a algo semelhante ao que aqui estou a fazer, uma reflexão sobre a estreia. Ora isso não é matéria para lá, não me justifico ao leitor antes de ele me ler. A crónica, como género, tanto dá para resmungar sobre os engarrafamentos da vida ou espraiar-me sobre os peitos da vizinha, reflectir sobre um acontecimento que abala a sociedade ou simplesmente deixar a caneta correr sobre o que lhe apeteça: a inspiração do cronista é rainha e daquelas pré-constitucionais, as absolutistas.
O conto “a capulana e o mar”, numa coluna que se chamará ‘Letras do Índico’ (também não corri o suficiente para alterá-la para ‘letras de mim’, a solucionar) e apresentado como o primeiro texto do novel colunista, exibe um cordão umbilical de tamanho exagerado, e esta é afirmação com conta e peso pois, sem rejeitá-lo, afirmo que assim visto tem tamanho que não existe nem me é preciso. Orgulho-me do tanto que África e as suas memórias me deram e dão, e começando por esse que está aí em cima, à esquerda, onde cada página tem cheiro que não engana. Prescindo do excesso pois neste nosso recanto comum assento em raízes suficientes para afirmar-me pelo que sou e não pelo que fui, não sendo menor a ternura que me induz.
Sei que em tudo o que escrevi se lê um grito pela emancipação, agora afirmado sem embaraço e antes murmurado. Sei também que poderei parecer ingrato ou infiel, até contraditório por, com desejos emancipalistas tão fortes ao tema de génese, iniciar nova fase socorrendo-me de fórmula que sou o primeiro a declarar limitada, curta para como me leio hoje e quero ler-me amanhã. Entendo as carícias trocadas entre a capulana e o mar num enamoramento no embalo da maré, como texto de valor idêntico a outro em que as letras estremeçam no frio polar, ou hesitem nos passos e vírgulas pelas românticas esquinas duma velha cidade europeia. Texto, ficção, criação tão livre como é imenso e infindável o mundo para quem o escreve. E eu quero escrevê-lo, mas com África incluída. Porque não começar por ela, de novo? Afinal o romance das águas é universal, mas é lá que o seu beijo é mais quente...
Iniciar a minha colaboração com uma crónica criada de raiz e sendo o primeiro texto o de introdução à coluna, entendi que me obrigava a algo semelhante ao que aqui estou a fazer, uma reflexão sobre a estreia. Ora isso não é matéria para lá, não me justifico ao leitor antes de ele me ler. A crónica, como género, tanto dá para resmungar sobre os engarrafamentos da vida ou espraiar-me sobre os peitos da vizinha, reflectir sobre um acontecimento que abala a sociedade ou simplesmente deixar a caneta correr sobre o que lhe apeteça: a inspiração do cronista é rainha e daquelas pré-constitucionais, as absolutistas.
O conto “a capulana e o mar”, numa coluna que se chamará ‘Letras do Índico’ (também não corri o suficiente para alterá-la para ‘letras de mim’, a solucionar) e apresentado como o primeiro texto do novel colunista, exibe um cordão umbilical de tamanho exagerado, e esta é afirmação com conta e peso pois, sem rejeitá-lo, afirmo que assim visto tem tamanho que não existe nem me é preciso. Orgulho-me do tanto que África e as suas memórias me deram e dão, e começando por esse que está aí em cima, à esquerda, onde cada página tem cheiro que não engana. Prescindo do excesso pois neste nosso recanto comum assento em raízes suficientes para afirmar-me pelo que sou e não pelo que fui, não sendo menor a ternura que me induz.
Sei que em tudo o que escrevi se lê um grito pela emancipação, agora afirmado sem embaraço e antes murmurado. Sei também que poderei parecer ingrato ou infiel, até contraditório por, com desejos emancipalistas tão fortes ao tema de génese, iniciar nova fase socorrendo-me de fórmula que sou o primeiro a declarar limitada, curta para como me leio hoje e quero ler-me amanhã. Entendo as carícias trocadas entre a capulana e o mar num enamoramento no embalo da maré, como texto de valor idêntico a outro em que as letras estremeçam no frio polar, ou hesitem nos passos e vírgulas pelas românticas esquinas duma velha cidade europeia. Texto, ficção, criação tão livre como é imenso e infindável o mundo para quem o escreve. E eu quero escrevê-lo, mas com África incluída. Porque não começar por ela, de novo? Afinal o romance das águas é universal, mas é lá que o seu beijo é mais quente...
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A capulana e o mar
A capulana enrolada quase no rabo, num nó ágil que desnuda segredos que as ondas beijam com lascívia. O vulto, dobrado, lenço na cabeça, blusa de chita e a capulana, que se destaca no mar agriculturado pela noite, prado de ondas e sabores salgados, que rompe, manso, contra a areia quente. As mãos seguem os olhos, argutos, que procuram búzios, conchas, os tesouros que as ondas dão à areia em fecundação que a faz brilhar ao sol quando o dia descobre o que a noite e as ondas deixam na praia para a seduzir.
Em volta dos joelhos a água remoinha e borbulha, os pés que se enterram devagar vão mudando o apoio ao sabor das mãos que recolhem as jóias do mar, e de que ele se despoja finda a noite que o veste em prata, para dançar o eterno namoro à areia da praia que o abraça, sequiosa dele mas talvez interesseira nas prendas com que o mar a seduz.
A capulana recebe o beijo e lá fica a sua marca, beijo húmido que lava pernas e panos, o corpo dela e a sua capulana, híbrido adorno que se cola às pernas como temeroso da água que a molha beijando-a, sempre mais e mais enquanto as mãos recolhem os búzios e as conchas, cada uma tão diferente... Por vezes o Sol no alto suspende-se e brilha com mais força quando o vulto se ergue e a mão eleva um dos tesouros e, à sua luz e brilho, há olhos que riem no prazer da beleza que descobriram, tesouros do mar que a capulana guardará. As conchas têm matizes radiantes e brilham mais intensamente contra o céu que mergulha no verde das águas e não esconde a beleza poisada na areia. Fora da sua prisão de água, à luz que cai em ondas de calor, as conchas e os búzios brilham de forma especial antes de mergulharem no segredo que o nó da capulana esconde. O nó, lasso, vai cedendo ao peso do pequeno saco que a capulana dobrada forma, e é reposto enquanto as águas, a maré que vai e vem, torneia-lhe as pernas magras mas robustas. Ritual colector, riqueza que a capulana conhece e conserva.
Ela comprara a capulana faria agora dois meses, quando vendera para o mercado a sorte dum dia às conchas que trouxeram um cesto de peixe, oferta dum pescador que ali aportara, o bojo da canoa cheio e muita vontade de partilha da sua fortuna com o vulto de capulana arregaçada que lhe fora farol enquanto as ondas o puxavam para a areia e, ao longe, lambiam de leve os panos e a moça que colhia as conchas como se de lagostas em ouro se tratasse.
Azul e com listas vermelhas, ao centro o mapa de mãe-África que lhe parecia enorme, tão grande como este mar que a molhava deixando rugas como se traçasse cadeias de montanhas onde aprendera que seriam terras de deserto, ocas de animais, verde, água, ocas desta África que ela conhecia e dava-lhe conchas e búzios. A capulana gostava de ir ao mar, dobrada em volta dos seus tesouros, molhada pela água excitantemente salgada, e gostava também da carícia da areia que as ondas alumiavam, das suaves ternuras e cócegas que as mãos dela lhe faziam, os dedos que faziam e refaziam o nó, quando a batiam e esfregavam para fazer sair a areia, já seca ao calor, do azul e do vermelho onde o contorno de África ganhava um tom especial sob o Sol que a aquecia após o beijo dele, o seu amante mar, dono das conchas e outros tesouros e que lhe os dava, malicioso e sedutor, para a seguir a beijar na sofreguidão das suas ondas que se erguiam, roçando as nádegas e molhando a capulana.
Esse mar que a lambia com prazer e volúpia, que por cada prenda que dava requisitava mil e um beijos e ternuras, ousado amante das listas vermelhas da capulana, da África que brilhava ao Sol e que tornava a espuma brilhante, quando a onda ia e ficava o vazio de mar. E os seus restos viviam na capulana, brilhante de molhada, enrugada no excesso de meiguice do abraço de paixão que recebera.
A dona da capulana e o pescador nunca se amaram assim, não há memória naquela praia de paixão tão intensa como a da capulana e do mar. Romance que se repetia sempre que o vulto, dobrado, lenço na cabeça e blusa de chita, a capulana azul com listas vermelhas dobrada quase até às nádegas, recebia os beijos do mar e as ondas gritavam o seu prazer quando a acariciavam e ela brilhava, as cores mais intensas que nunca o foram – nem quando nova, o remoinho nas pernas olhava fascinado aquele beijo e, em bolhinhas corria atrás da onda que investia na areia, quente, solo nupcial dos ardores por conchas, búzios e outras carícias, da capulana e do mar.
Consta na praia que, um dia, na areia quente, o pescador afortunado e a moça dos búzios e das conchas deram um beijo mas dele não teve ciúmes o mar, pois ele amava era a capulana.
1 Comments:
Isa, mufana: se eu não procurar dar os passos ninguém os dará por mim só poruqe publiquei um livro. Além de que tenho 'de saber'... ou não é assim? beijoka e... tu sabes.
(já é segunda-feira, já está impresso e daqui a horas vou comprá-lo; a minha primeira crónica em coluna regular. Queira ou não... é. E não estou assim tão indiferente a isso como até a mim me parece, afinal.´Não é como 'sábado vamos os dois ao cinema pela primeira vez', mas é uma 1ª vez... e só se é virgem 'até', embora depois se fale muito nisso...
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