O regresso: nova versão
(alternativa a esta, e no seguimento dum ataque de melancolia que estava anunciado há bastante tempo)
O segundo choque foi o maior, e perdura há três dias num misto alcoolizado e alegremente irresponsável, em que os instantes que antes apelidaria de lúcidos são olhados como mosca, chata e a afugentar. Nas crises, naquela hora e meia em que acordo e penso nas necessidades básicas antes de me diluir no ventre que abri há três dias atrás, o meu sossego passa por saber que rebentaram-me as águas no Terceiro Mundo mas aqui é sul de África e não o caldeirão de Bagdade, que por certo trará melhores memórias aos sobreviventes que desaparecerem misteriosamente nos subúrbios da promoção turística do que as que ficarão desta festa louca em que mergulhei, e onde nado com prazer que de há muito nem suspeitava existir em proveito do, ora, próprio.
Logo ao chegar, ainda em pleno ar uma lágrima sentimentalmente ritual a espreitar, e depois o tal bafo quente de que todos falam como a primeira sensação física de conforto com o registo adormecido do passado. As escadas desceram-se na preocupação do degrau e do olhar bem o conjunto da gare, ler uma e duas e cinco vezes o nome do Aeroporto e os olhos passearem pela varanda melhor conhecida, em buscas de confirmações visuais que afastassem os temores congeminados nas longas horas de voo. Os últimos passos a descer do avião foram já enrolados na nuvem que mergulha num céu e numa terra beijadas, e os primeiros no cimento foram ‘históricos’ e assim sentidos, eu-pessoa sabia que os passos que dava eram irrepetíveis e muito importantes para o saco de recordações que eles transportavam, ossado já em fase de risco de validade e sedento do tónico duma caminhada com menos trinta anos. Depois veio o tal bafo, e as resistências do turista começaram a ceder dando vez a silêncios confortados, barriga tão cheia de coisas boas que apetece ronronar, feliz. Aquele ar denso e parado, quente, a cor do céu num azul mais suave que o do Norte, em excesso jurar-se-ia até sentir cheiros locais, exóticos mas não estranhos a uma memória que pulava de alegria.
Foi o primeiro choque, a chegada, e flutuei nele durante dois dias até conseguir escapulir-me ao circuito que os locais servem aos turistas saudosistas: ‘morei ali’, ‘ia tomar café acolá’, ‘Uma vez, ali…”, etc, etc. Logo à partida do aeroporto fiz declarada sugestão que foi aceite como excentricidade normal, e não foi dessa que fiquei a conhecer a avenida que vai de lá até ao antigo bairro da cooperativa, hoje porta normal da cidade para as asas que lá aterram. Viemos pela minha velha Avenida e a minha excitação foi grande ao chegar á zona onde morei, os olhos sequiosos de recordações, em busca de pormenores familiares e uma passagem que é sempre rápida demais em frente do prédio onde morei em parte da infância e um niquito da adolescência. Depois, mergulhamos na zona ‘bonita’ e ficou para trás durante dois dias inteiros essa parte da cidade e de mim. Fui ao longo da praia até ao sempre famoso restaurante que é uma instituição ritual, passeei pela baixa da cidade e foi-me apresentada a movida nocturna na tal variante que resulta do esforço que se faz em casa para dar o melhor sofá ao convidado, visitei na primeira noite três bares da moda, finda a ronda das pastelarias mais movimentadas, para longa digestão líquida da colecção de postais ilustrados adquirida e onde se incluem as faltas que eram apontadas com ironia pelos cicerones, sempre em busca do turista nostálgico que há em cada um que pisa o chão e sente o bafo quente, trinta anos depois. Depois fugi.
Saí do hotel cedo em busca de tudo e até de mais tempo para tanto ver. Fui andando, parei a ler os títulos dos jornais tentando perceber a vida da cidade que me era totalmente estranha mas onde os meus passos mergulharam após o café tomado no mais famoso do passado, figura de lei em qualquer colecção de memórias, mesmo para aqueles que não o frequentaram. O trânsito, grande mais um sossego comparado com o das capitais europeias onde o homem não vive sem essa pele metálica, armadura e penacho, serviço militar obrigatório e pavoneio social. Depois, no outro lado da rua subi e embrenhei-me nela, primeiro percorrendo o acesso à rua principal da cidade, a longa e larga avenida com seis faixas que ia dos bairros sempre chiques onde se namora a baía ao acordar até ao pulmão humano da cidade de cimento, a sua Alta e os quarteirões populares, e conforme os passos iam para lá seguindo ao longo da manhã que aquecia corpo e entusiasmos, mais o bafo tomou conta de mim. Na mesa da cervejaria, longe, muito longe, da mínima hipótese de conhecer ou ser reconhecido, longe o hotel e as voltinhas da saudade, tomei a decisão de penetrar no velho bairro de caniço, o tal da Avenida que vem do aeroporto desde a tal alta da cidade, hoje como antes cheia de camiões mas com o folclore dum mundo onde uma chapa com rodas é um meio de transporte e um cinto de segurança uma ideia muito engraçada, havemos de voltar a falar nisso um dia…
E conforme os pés cautelosos ganharam ritmo e venceram inseguranças, mergulhei nestes três dias que duram com o que chamarei noutro tempo de memórias de alucinação temerária, que é o de não saber quem fez a cama onde tenho dormido e, até já fiz amor. Eles têm nome mas troco-os, esqueço-me dos correctos e entre garrafas de cerveja importada e longos churrascos no quintal da casa em que a noite está cheia de ruídos ‘especiais’ para além das folhas da enorme mangueira que, no seu centro, abriga o céu o olha-nos, foliões, complacente, nesta festa permanente não Marias cujo sorriso não perdure para além da sua burocrática e familiar graça. Idem com eles, há uma camaradagem cúmplice, eles deliciados com o turista que apareceu e faz tudo ao contrário do convencional, ele bêbado de felicidade por estar nu e bem bebido, longe do Norte e, supõe e sonha como real, de toda a vida a pesar na ossada. Quando a festa onde penetrei, por arrasto do grupo com quem confraternizara no bar até ao estado eufórico do ‘vai mais uma’,quando os últimos grupos se formaram e fiz a piada da noite, indagando sobre onde poderia apanhar um ‘chapa’, quiçá um táxi, ela que estava com a sua pele quente colada à minha passou a sua língua pela minha orelha, lambeu-me desejos e segui os seus passos, mesmo hesitantes pelo escuro dos becos que afinal não eram tão familiares assim mas a mão dela e as minhas nela foram farol dos tais que cegam para além do seu brilho, e iluminam hesitações filosóficas.
Estou aqui há três dias e não sei se os cicerones me procuram ou se este é um comportamento percentualmente normal, e eles estarão crentes em como a promoção turística acabará e dirão adeus e um suspiro a mais um de olheiras e óculos escuros, satisfeito pelo seu safari ao passado. Daqui a quatro dias regressa a excursão e acaba a promoção, o quarto do hotel é dado a outroe avisam a polícia e o consulado de que um turista desapareceu. Lá no Norte é um escândalo e eu estar-me-ei nas tintas para isso, festa, ela sorri, lambe-me com uma carícia que não recordava nem poderia reconhecer na promoção e na voltinha turística. Agora vou até ao bar pelos becos que nunca conheci mas agora já familiares, conheço os cantos onde os cães mijam e já não os piso, e os meus passos são seguros por esta areia quente até daqui a cinco dias. Depois penso nisso, agora que descobri a fonte do bafo, quero banhar-me nela, frango assado e cerveja importada, gosto do azul suave do céu e da mangueira das noites no quintal. Até já ida-e-volta e mais sete dias em meia pensão, eu estou a gozar regime completo e gosto do fresco da língua do bafo quente.
1 Comments:
Vai contar à lagarta da lezíria que não andas com uma vontade louca de... - beijo de b´dia!, muf'
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