Xicuembo (versão 3.0)

memórias & resmungos do Carlos Gil

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quarta-feira, maio 18, 2005

Cá de longe, do Tempo

Divorciamo-nos há quase trinta anos atrás. Um amor juvenil, um namoro em que as mãos dadas e as carícias trocadas fizeram-me suspirar por mais, acasalamento e de papel passado, uma tarde rabiscado naquela avenida que desce a colina e beija-te no ventre, baixa da cidade onde o Homem ergueu orgulhosos trinta e tal andares para dizer à linha da paisagem, em grito de posse para a terra amante fiel e tolerante que tudo lhe dá e permite, que a sua ambição é grande, alta, excessivamente alta. Antes do divórcio que desalinhou o nosso entrelaçado de afagos, mesmo antes do casamento precipitado pela nossa recém maioridade, eu e tu, musa-cidade, namoramos sem fim nem jeito nas tuas esquinas que me eram tão familiarmente sensuais, esquecidas as convenções nas partilhas de amor que trocamos no teu Sol africano, esse bafo quente que clamava por quinhões de emoções que não lhe regateamos. Era um amor doce, eram beijos sem fim trocados na suavidade da brisa que subia da baía para a colina e amenizava fins de tarde tropicais, doutras vezes impetuosos no travo de sal das ondas que nos lambiam na areia macia das praias, portas do mar onde nos sentávamos, juntos, próximos, amantes, jurando cumplicidades e sorrindo ao viver. Sim, estávamos apaixonados e o nosso namoro era tão lindo como é o amor que líamos nos nossos olhos quando nos encarávamos e sorríamos, enlevados na nossa paixão.
Hoje, os tais trinta anos depois mais coisa menos arrufo, ainda não gosto de falar no divórcio, prefiro afagar em mim o enlevo das carícias da memória, as mãos dadas, os suspiros e as juras que trocávamos. Compreendes-me querida? Como dizem os antigos e que muito conhecem destas coisas dos amores perdidos, não há verdades únicas nas separações e é difícil arrolar razões e encontrar culpados únicos quando os dedos se separam e deixa de se sentir o conforto da sua carícia. Quando o romance termina e esvaziam-se os dias dos calores como aqueles de que o nosso namoro foi farto, quando sobrevém às noites o frio da solidão. Não, nem as palavras de traição são aliçadas, excessivas na injustiça de tanta letra dura para contar lágrimas derramadas, o tempo que passa, a separação. Aconteceu, os Deuses entenderam que o nosso romance precisava de mais provas, outro fogo que não o que nos aquecia na ânsia dos jovens amantes, e ele soçobrou; o nosso casamento, pueril, reprovou-se a tal prova e chumbou o enlace que se jurara eterno. Conheci outras cidades e outros leitos, mais amores, e valha a verdade em contar-te que, neles, também fui feliz. Noutros colos e noutras ruas também amei e o meu sorriso surgiu natural ao acariciar seios-colinas, nas águas doutras praias e na sombra doutras árvores, na crosta urbana doutras terras e doutras cidades, também ternas na sua secular carícia, sapiente. Mas há estes momentos de melancolia em que olho o passado e recordo o primeiro amor e cai-me uma lágrima de saudade.
Hoje, vida feita e semi-gasta, com tanto balanço encerrado e de contas ajustadas há em mim uma portinha que não se cerra, abro o peito e espreito, vejo-te a ti minha primeira amada. Vejo-te, minha cidade. Se me olho ao espelho e tento ler as rugas, decifrar as cãs, desisto de nelas contar as desilusões e deixo o meu olhar perder-se no brilho dos olhos quando a memória em ternura te contempla, as avenidas e o caniço, as acácias tão rubras como quente era o nosso enlevo. Fazes-me falta neste Outono da vida, querida. Sinto a falta do teu bafo quente, o brilho do teu sorriso, da magia que era acordar de mãos em ti enlaçadas e acreditando na eternidade da nossa paixão. Desculpa-me pelo que errei, pelas minhas culpas na nossa separação. Desculpa-me. Porque ainda te amo, pelo tempo passam outras que me amam e me tratam bem mas confesso-te em letra de lei que, em mim, ainda não aconteceu amor como o nosso primeiro. Desculpa-me meu amor, minha cidade.

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro Carlos Gil,

Podia chamar esta pequena janela a partir do post anterior, "O livro", referido no meu post "Xicuembo". Faço-o aqui para que saiba que já li este e lerei todos.
Não sei se já leu o meu post e, pensando que é preciso pedir, peço um link do meu Malaposta no seu blog.
Abraço
acastro@sapo.pt

quarta-feira, maio 18, 2005 10:34:00 da tarde  
Blogger Carlos Gil said...

Obrigado pela visita e pela atenção, castro. Quanto ao link, e dado que v~em aí mudanças fiscais governamentais, brevemente também actualizo a minha tributação fiscal bloguista. Um abraço.

sexta-feira, maio 20, 2005 1:29:00 da tarde  
Blogger Mitsou said...

Como a lágrima insiste em ficar, deixo-te apenas um beijo de quem sabe do que falas.

sábado, maio 21, 2005 1:51:00 da tarde  
Blogger Brigida Rocha Brito said...

Texto lindo. Lindo, lindo, lindo. Adorei!

sábado, maio 21, 2005 4:33:00 da tarde  
Blogger Unknown said...

Excelente Carlos. Estou ansioso por folhear o livro. Um abraço!

sábado, maio 21, 2005 11:39:00 da tarde  
Blogger Maria Augusta said...

Muito cheio de alma,de silêncios acordados da noite que teima em recordar o amor,a cidade que fica no dentro de um estar ,que se senta no colo do pensamento...a cidade vivida,entranhada de quem a tem no pulsar da vida..e não se afasta..é-se no cheiro das recordações e está nas gentes que a têm na palama da mão..
Que bom! um beijo..no homem da cidade da terra...

maria augusta braga

domingo, maio 29, 2011 1:41:00 da tarde  

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