"Os empatas", de Faíza Hayat
Desta vez vou mesmo dar-me ao trabalho. Já há algumas semanas que leio com muito interesse as crónicas de Faíza Hayat na revista 'Xis' do Público de sábado. Escrita bonita, escorreita e muito perspicaz. A desta semana, "Os empatas", fala no porquê de a tal integração não estar a ser bem sucedida. Da má vontade em fazê-la de quem depois se vem queixar/chorar que ela não acontece. Nós, país de acolhimento. Nós, país de queixas. Nós, país sem espelho, nós, os empatas. Aqui vai:
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Na minha última visita a Lisboa, um amigo convidou-me para assistir com ele a um jogo. "Se você tiver tempo, claro", explicou Milton. Tenho tempo sim. Uma ou duas horas sempre se arranjam. "Talvez leve mais tempo, meu amor. Você pode guardar um dia inteiro só para isso?" Milton acrescentou também: "Tem vez que o jogo interrompe no final do dia e continua na manhã seguinte". 'Tá bom, Milton, "'tamo aí". Quem joga? "Olha, acho que o time é português mas o treinador não dá as caras. Brasileiro eu sei que ele não é não". E contra quem joga Portugal? Milton disparou a rir: "Contra o time do Resto do Mundo!"
Fui convocada para estar na Praça dos Restauradores às cinco da manhã, "nem um minuto depois, ou vai perder bilhete", junto à Loja do Cidadão. Mesmo àquela hora, ainda noite cerrada, já havia pessoas. Faziam fila, na rua, sob a chuva miudinha mas persistente de final de Outubro. "Esses aí são os primeiros jogadores de hoje", explicou Milton ainda com os olhos pequenos do sono, "o que quer dizer que o jogo deles já começou ontem. Hoje vêm jogar o segundo tempo".
A fila, perceberia ao longo do dia, era, efectivamente, uma selecção do resto do mundo não-comunitário: muitos africanos, ucranianos, moldavos, búlgaros, vários brasileiros, dois paquistaneses e, dispersos, solitários, imigrantes algures da América Latina e do Sul da Ásia. Todos em busca de um carimbo, de um apêndice no passaporte, de uma prorrogação no visto, esperando, de madrugada, a "abertura de portas" do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Marija, a companheira de Milton, é uma das "jogadoras". Originária de um país de Leste, é doutoranda numa universidade portuguesa. Como ainda não tem estatuto de residente, tem de renovar mais uma vez o seu visto de estudo. Já na véspera tinha perdido o dia no SEF, inutilmente, porque havia "uma falha no sistema de informação" e apenas um punhado dos estrangeiros foram atentidos.
Hoje, de novo, horas e horas a fio, os altifalantes repetem, no primeiro andar da Loja, que "o sistema de informação não funciona". (Li algures sobre o enervante efeito acumulado das "informações" nos altifalantes públicos da Alemanha Nazi.) Outras coisas podem "não funcionar", por exemplo a máquina de distribuição das senhas, o que aumenta a incerteza na lotaria do atendimento do SEF (aconteceu ontem, conta-me Marija).
Milton, ao longo do dia, fala pouco. Apenas mantém "o relato do jogo": lê para mim, imitando um comentador desportivo, os painés com as senhas de vez. Às 10h10, a EDP (que tem cinco mesas de atendimento) já tinha atendido 95 pessoas; o SEF (que só tem UMA mesa), não conseguira ultrapassar a senha número sete - à hora que abriu, finalmente, a mesa de informações.
10h25: EDP-106, SEF-9.
10h35: EDP-125, Direcção-Geral de Impostos-65, SEF-9.
11h03: EDP-166, DGI-78, SEF (adivinhem?)-9.
A linha de informações estará, horas, congelada no mesmo ponto.
12h17: EDP-229, DGI-115, SEF-14.
No dia anterior, a esta hora, a senhora do SEF disse finalmente a Marija que ela teria de voltar na manhã seguinte. "Mas eu estou aqui desde as 7h30!""Não chega. Venha às 4h00. Venha às 2h00. Se fosse a si dormiria cá". "É frustrante, conta-me Marija. Dá raiva o tempo que se perde. Dá raiva a maneira como nos tratam. Pagam a um segurança para estar aqui de olho em nós mas não gastam dinheiro em pôr pessoas no atendimento". Hoje, Marija espera melhor sorte. "Estou no top10..." Corrijo: senha 15.
Compreendo a raiva. Eu partilho-a, misturada com vergonha de ser de um país que "acolhe" assim os estrangeiros. "Seria mais honesto fechar a Europa. 'Não há, kaput!, vão embora'. Isto assim, não". Concordo com Milton. Controlar a imigração é necessário. Humilhar os candidatos é gratuito.
O SEF na Loja do Cidadão exerce - sobre indivíduos - a degradação banal própria de um país degradado.
16h47: EDP-420, DGI-230, SEF... O painel indica "00". A última senha atendida foi a doze.
às 18h15, Marija é finalmente chamada. A senhora do SEF gastou não mais de cinco minutos com ela. "Você está com um ar tão cansado", disse ela a Marija, com um sorriso que dava vontade de a açoitar. "Deve ser a sua hora de dormir". Milton notou que eu estava a ferver. "Não vale a pena, meu amor. Violência no estádio não altera o resultado mesmo: o jogo do SEF é só empatar..." Relatório da partida: perdeu Portugal - em dignidade.
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