A cana de pesca
O escritório assemelha-se a uma biblioteca, talvez ao gabinete do director duma. A secretária no recanto da janela, por onde se vêm os cedros sob os quais almoçaram, é numa madeira mais escura que a das estantes que estão em todos os cantos, e os seus pés assemelham-se às patas dum animal que vigia os tesouros que as portas envidraçadas albergam, encadernações infindáveis de vidas que ele nunca conhecera. Todo o ambiente cheira a poder, há no ar, para além dos móveis caros, a diferença entre o ser rico e ser poder, não duvidaria um segundo se ele lhe contasse que, ali sentado, mais que gerir e criar fortunas perenes ali comandava exércitos ou influenciava governos. Um lustre que brilha em mil tons de cristal dá volume ao pé-alto do gabinete, num canto uma mesa com um candeeiro com o pé em bronze e jornais, duas cadeiras, no oposto um sofá em ‘éle’ com um monte de pastas de arquivo, como se ele lá tivesse estado sentado a estudar dossiers. Os passos soam-lhe na grossa carpete como turbilhões que perturbam o silêncio enquanto percorre vagarosamente a sala e olha as estantes, as lombadas em velhas encadernações, e mais uma vez olhou-o dissimuladamente atrás da secretária e, novamente, não o reconheceu. Poderoso. Rico. E muito mais velho, tal como ele, irreconhecíveis para além do fortuito que gerara o reencontro. Rico e poderoso como nunca sonhara conhecer pessoalmente alguém assim, e muito menos o velho amigo de quando foram iguais, na idade da igualdade que é gerada por as desigualdades serem outras, quem é mais forte ou mais esperto, tem namorada mais bonita, ou joga melhor um jogo qualquer. Antes de se perderem de vista, o outro dos prazeres da vida vivida na corda e enriquecendo como seria impossível prever, ele num salta e cai eterno, até pó e conflitos com a lei pelo meio, agora num cai que já se arrasta há tempo demais.
Ao almoço tinham falado da vida do antes, riram-se, teve diplomacia de não lhe perguntar o como, e ele fora educado ao não lhe perguntar o mesmo. Recordaram o liceu, os colegas e as colegas, os passeios e as aventuras, repisaram as memórias comuns e todos aqueles pormenores que vêm à cabeça de dois inseparáveis amigos juvenis que se reencontram trinta e tal anos depois, ora para além da décalage dos anos com a outra social que os tempos diferentes construíram entre eles. E entretiveram-se a derrubá-la, muros que foram demolidos e conquistados com delicadeza, atenções mútuas que o respeito do ontem longínquo impõe aos olhos que não são cegos às suas novas realidades, díspares, quase extremas. Foi suave, temeroso, os garotos de ontem cederam pele e voz muito lentamente ao homem que agora eram. Existia uma barreira de conversa proibida que ambos sentiam e estava presente nos silêncios quando as divagações nostálgicas se tornaram estéreis, o tema tabu dos irmãos desavindos sucesso e insucesso. Havia que reconstruir um mínimo do antes, sentiam-no ambos, desejava-o ele e temera não ser correspondido. As rugas, foram as rugas o mote, a divagação por elas passou às cicatrizes, o outro contou-lhe da morte dum filho ainda criança e, abrindo o seu peito ao afago do amigo de antes, deixou-o soltar também o seu suspiro, falar nas duas famílias desfeitas, do vício da droga que quase o vencera, deste amargo balanço que nas noites de insónia pelo temor das manhãs fazia ao tresmalho da vida, e as rugas pesavam cada uma uma desilusão, contou-lhas e explicou-lhas uma a uma e ele fez o mesmo às suas, olhos mútuos de confiança e serenidade, os mesmos olhos que assim o foram enquanto juvenis, entre eles renasceram no mostrar de chagas. Depois ele chamara-o para dentro da casa, à sombra das árvores que não eram dum jardim público porque os muros ao longe mostravam que era privado sucedeu o gabinete, e ele pedira-lhe uns minutos de privacidade e sentara-se à secretária, guardiã do seu próprio templo de poder.
Ele acabou de escrever e entregou-lhe um cheque. Olhou para a soma, enorme, para ele uma fortuna igual às que a vida nunca lhe ganhara. Ao portador. Uma fortuna ao portador, ele portador, ele seu portador. A pose atrás da secretária era familiarmente de poder, um poder natural que o seu corpo assumia quando a ela sentado, tão diferente da atitude descontraída de quando partilharam o jantar e divagaram em volta de nomes e locais do passado, o reencontro dos amigos que deuses fizeram o amigo rico e o amigo pobre. Os seus olhos ergueram-se e fitaram-no e sorriram-lhe, ei-lo de regresso quando me fita e olha-me e não me reconhece mas sim ao colega de tropelias, e ele que o fita também e não reconhece em quem assim assina e entrega um cheque ao portador o antigo colega de escola, parceiros com juras mútuas de amizade eterna, cumplicidades e ajudas mútuas naturais num tempo e que ninguém, via rugas da vida decorrida, espera ver de pé nem solicitá-las. Os olhos sorriram-lhe e as palavras também o fizeram, amigáveis, aquela fortuna era ao portador, nem um cêntimo tinha outro dono que ele, portador, nem outro fim diferente daquele que desejasse, eis a fortuna pura despida de origem e obrigações. Pela sua cabeça passam imensas coisas, o valor do cheque e o muito que com ele compraria, até luxos e sossego, o gesto do amigo de antes que ao reencontrarem-se soubera recordar o antes e utilizara o hoje na sua homenagem. Em seguida entregou-lhe outro cheque, e que dele e do seu preenchimento também não se apercebera antes. Outra vez o mesmo valor, os olhos saltaram dum cheque para o outro e ergueram-se interrogativos. “- tem o teu nome, esse não é ao portador” – e os seus olhos estavam evadidos do passado, havia uma muralha nova, e sentiu a incómoda presença da secretária e das suas pernas feitas garras de fera guardiã: “- multiplica-o, um dia iremos reencontrar-nos e deste que tem um nome faremos contas, é a tua garantia em como domas, no outro, o portador”. Muitos anos depois encontraram-se de novo e também por acaso, e já não havia só a memória juvenil para recordar, saudosista de si mesmos; havia a nova, do reencontro e do almoço sob os cedros dos outrora garotos agora soldados cicatrizados do viver, da secretária que era a guardiã, dos dois cheques. Ele entregou-lhe um, melhor: devolveu-lho. O ao portador.
Ao almoço tinham falado da vida do antes, riram-se, teve diplomacia de não lhe perguntar o como, e ele fora educado ao não lhe perguntar o mesmo. Recordaram o liceu, os colegas e as colegas, os passeios e as aventuras, repisaram as memórias comuns e todos aqueles pormenores que vêm à cabeça de dois inseparáveis amigos juvenis que se reencontram trinta e tal anos depois, ora para além da décalage dos anos com a outra social que os tempos diferentes construíram entre eles. E entretiveram-se a derrubá-la, muros que foram demolidos e conquistados com delicadeza, atenções mútuas que o respeito do ontem longínquo impõe aos olhos que não são cegos às suas novas realidades, díspares, quase extremas. Foi suave, temeroso, os garotos de ontem cederam pele e voz muito lentamente ao homem que agora eram. Existia uma barreira de conversa proibida que ambos sentiam e estava presente nos silêncios quando as divagações nostálgicas se tornaram estéreis, o tema tabu dos irmãos desavindos sucesso e insucesso. Havia que reconstruir um mínimo do antes, sentiam-no ambos, desejava-o ele e temera não ser correspondido. As rugas, foram as rugas o mote, a divagação por elas passou às cicatrizes, o outro contou-lhe da morte dum filho ainda criança e, abrindo o seu peito ao afago do amigo de antes, deixou-o soltar também o seu suspiro, falar nas duas famílias desfeitas, do vício da droga que quase o vencera, deste amargo balanço que nas noites de insónia pelo temor das manhãs fazia ao tresmalho da vida, e as rugas pesavam cada uma uma desilusão, contou-lhas e explicou-lhas uma a uma e ele fez o mesmo às suas, olhos mútuos de confiança e serenidade, os mesmos olhos que assim o foram enquanto juvenis, entre eles renasceram no mostrar de chagas. Depois ele chamara-o para dentro da casa, à sombra das árvores que não eram dum jardim público porque os muros ao longe mostravam que era privado sucedeu o gabinete, e ele pedira-lhe uns minutos de privacidade e sentara-se à secretária, guardiã do seu próprio templo de poder.
Ele acabou de escrever e entregou-lhe um cheque. Olhou para a soma, enorme, para ele uma fortuna igual às que a vida nunca lhe ganhara. Ao portador. Uma fortuna ao portador, ele portador, ele seu portador. A pose atrás da secretária era familiarmente de poder, um poder natural que o seu corpo assumia quando a ela sentado, tão diferente da atitude descontraída de quando partilharam o jantar e divagaram em volta de nomes e locais do passado, o reencontro dos amigos que deuses fizeram o amigo rico e o amigo pobre. Os seus olhos ergueram-se e fitaram-no e sorriram-lhe, ei-lo de regresso quando me fita e olha-me e não me reconhece mas sim ao colega de tropelias, e ele que o fita também e não reconhece em quem assim assina e entrega um cheque ao portador o antigo colega de escola, parceiros com juras mútuas de amizade eterna, cumplicidades e ajudas mútuas naturais num tempo e que ninguém, via rugas da vida decorrida, espera ver de pé nem solicitá-las. Os olhos sorriram-lhe e as palavras também o fizeram, amigáveis, aquela fortuna era ao portador, nem um cêntimo tinha outro dono que ele, portador, nem outro fim diferente daquele que desejasse, eis a fortuna pura despida de origem e obrigações. Pela sua cabeça passam imensas coisas, o valor do cheque e o muito que com ele compraria, até luxos e sossego, o gesto do amigo de antes que ao reencontrarem-se soubera recordar o antes e utilizara o hoje na sua homenagem. Em seguida entregou-lhe outro cheque, e que dele e do seu preenchimento também não se apercebera antes. Outra vez o mesmo valor, os olhos saltaram dum cheque para o outro e ergueram-se interrogativos. “- tem o teu nome, esse não é ao portador” – e os seus olhos estavam evadidos do passado, havia uma muralha nova, e sentiu a incómoda presença da secretária e das suas pernas feitas garras de fera guardiã: “- multiplica-o, um dia iremos reencontrar-nos e deste que tem um nome faremos contas, é a tua garantia em como domas, no outro, o portador”. Muitos anos depois encontraram-se de novo e também por acaso, e já não havia só a memória juvenil para recordar, saudosista de si mesmos; havia a nova, do reencontro e do almoço sob os cedros dos outrora garotos agora soldados cicatrizados do viver, da secretária que era a guardiã, dos dois cheques. Ele entregou-lhe um, melhor: devolveu-lho. O ao portador.
3 Comments:
Fico assim. Embatocada. Quando leio textos escritos com a alma na ponta dos dedos. A admiração cala-me as palavras que gostaria de dizer. Mas sei que entendes este meu silêncio. É um privilégio ter-te como Amigo. E orgulhosa (e envaidecida), deixo-te aqui um abraço muito apertado com um beijinho carinhoso.
Meu querido amigo só hoje me "puz" na tua estória...aqui está o escritor que eu adivinhava por baixo da Eva...lol...salvo seja...
beijo, th
E é para NÃO parar, oh caneta!! - beijo, muf'
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