Xicuembo (versão 3.0)

memórias & resmungos do Carlos Gil

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terça-feira, setembro 27, 2005

Palavras em atraso

Ontem, no 'Santiago Alquimista', e numa organização da Associação Espaço Rui de Noronha, houve oportunidade para corrigir a mão e dizer muito do que, no meu mal sucedido improviso de Junho, no Galveias, silenciei acerca do meu livro e da sua génese.
Com a promessa de tão cedo não voltar a publicar aqui 'discursos', fica o integral da minha intervenção. A apresentação - brilhante! foi da minha amiga Paula Ferraz, poetisa luso-angolana com um coração enorme, que abriu descaradamente às minhas letras.
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"Todos os livros têm uma história, e cabe por norma ao autor contá-la. O pai da obra conhece ao filho cheiro, sabor e também o amargor, e a ele pertence a primeira descodificação.

Para além das palavras simpáticas e tolerantes que a Paula agora lhe dedicou, com o exagero que só a amizade justifica, há outras que as páginas afloram e que eu não abdico de vos contar.

Este ‘tijolo’, este querido tijolo que é o meu primeiro, é um e-livro pois em outra vida foi escrito, nasceu na Internet. Chamam-lhe vida virtual e até dela dizem ser falsa, irreal, mas não me rala qual delas é a real e qual é a virtual. Em mim complementam-se, e isso chega-me pois nunca direi das alegrias que não existem, guloso que sou de as viver.

Nesta vida, aqui e com vocês, ali fora onde a luz brilha e em cascata de momentos o quotidiano se desenrola, há o viver da vida construída, amores e desamores, lenta comunhão que por vezes sorri, noutras empalidece os sonhos, afinal tudo tão banal como o é viver.

Mas lá, no mundo virtual, reside o reino de brincar onde em momentos que chamo de mágicos o encantamento supera a realidade, e com um teclado e um ecrã nascem nuvens que enchem céus e amainam securas, os dedos brincam, brincam às palavras e delas nasce um castelo, lindo, o nosso castelo. Foi assim que este livro se fez e eu me descobri como o Carlos Gil autor, eu nasci.

Mas não fui original. Padeci do pecado de todos os escritores iniciados, de mim contei e talvez abusei, fi-lo autobiográfico. Tornou-se íntimo, chave de recantos secretos, mergulho num túnel longo de cinquenta anos de viver.

Algum tempo após o lançamento, cruzei-me com um amigo destes amores da palavra escrita que, sem então se aperceber – e até agora ainda não lho tinha dito! fez ao ‘Xicuembo’ – dizendo-o de mim - o elogio mais exagerado e inesperado que me foi dado ouvir.

Mas que me encheu o ego como tal só é possível aos que vivem na expectativa da leitura da sua primeira obra, o tremer dos primeiros passos no baile sabendo que se enlaça tanto, tanto, que o menor gesto de repúdio fará adiar eternamente o beijo por que se suspira.

Disse-me que eu era um “Jack Kerouac moderno”. Assim, sem mais nem menos, prevaricou na amizade e abusou no conforto da palavra amiga, nela estendeu uma carícia à nudez de que me vesti ao escrevê-lo.

Caberá aqui à verdade e à modéstia dizer: quem me dera ser hoje lido, quanto mais daqui a cinquenta anos. E mais tudo o resto, blá blá, blá blá, contente já eu estaria sem a tremideira de meter e tirar acertadamente as vírgulas, neste primeiro degrau de escada que me sua trepar, quanto mais não me engasgar nas vertigens de escrever obra de patamar, onde o horizonte do tempo é naturalmente vencido.

Exagerou, por certo em brincadeira amigável, mas eu gostei e das alegrias há que dar fé. Ele traçou o paralelo pela exposição pública que de mim faço, pela luz que abri em recantos que, havendo-os, normalmente o envelhecer mantém no silêncio constrangido.

É o embaraçoso do viver adolescente sempre cheio dos excessos que lhe são próprios – é afinal o aprender a crescer; mas dessa parte de nós reconheço que não é habitual fazer pesquisas públicas que vão além do gracejo e, se a estes recorri, ao outro lado não me esquivei.

Não tenham dúvidas que escrever é um acto solitário, e o escritor é um ser associal, monstro de egoísmos e de vaidades – olhem para mim e estão a ver um! Quando me refugio e escrevo sou execrável, e infelizmente nem sempre me liberto desse manto de fel quando a caneta se cala e volto a olhar o céu para além do que dele conta a ficção do narrador.

Tenho pena que aqui não estejam alguns daqueles que assistiram ao seu e ao meu crescer, livro e autor. Foram eles, primeiros críticos muitas vezes impiedosos, mas nunca hesitantes em alentar-me com palavras que se relêem sem descanso, que possibilitaram o construir do meu ‘Xicuembo’.

Contei com uma benesse adicional à amizade, e não foi pequena. África, Moçambique e a sua bela capital colonial, Lourenço Marques, pérola do Índico como lhe chamavam aqueles que dela conheceram mais que as memórias dum garoto que lá se começou a imaginar homem.

Esse é o cenário dessas páginas, o fresco lapidar onde cresci, e disso narro expondo sentires. Um sorriso de saudade pelo voo de crescer, o miúdo à solta pela cidade... mas sem esconder as lágrimas que teimam em assomar quando se ousa abrir cofres de segredos, e avivam-se paixões que a História tornou impossíveis de consumar.

Passados trinta anos estendi em letras essas memórias, num sorrir às mais doces que não ocultei ao reviver as amargas. Porque só se é completo quando não se omite nem se silencia, escala-se a vida sabendo que para trás ficam degraus, e que alguns foram dolorosos de subir.

Está aí, tem nome e não é anónimo, fui eu que o escrevi mas já não é meu. É vosso, dos leitores"

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