Umbigo migratório
Há momentos que quase valem uma vida. Acrescento o quase por respeito aos cinquenta anos em que vivi no limbo onde o fútil é rei, soberano asfixiador de muitas das melhores razões porque vale a pena viver.
Está esquisito o discurso? Adjectivado sem modéstias e prenhe de exagero, do início ao final? Fiquem para ler o resto, por favor.
Primeiro, senti-me útil; segundo, acompanhado; terceiro, realizado e, quarto e final, li nos olhos da minha família mais próxima coisas que não conto mas que vocês adivinharão. Vou tentar…
Fora convidado pelo Jorge Viegas a participar num colóquio num incerto ‘centro comunitário’ da Qtª do Conde, em que o tema a debate seria “Migrações”... ‘- O quê? e em que é que eu posso, com esse tema, dizer algo que valha a pena? nem penses! – Fala de ti, Gil. É o suficiente, fala da tua experiência”.
E pronto, passado o tempo dos resmungos abandonei-os e dei-me ao trabalho, e escrevi sobre a minha visão pessoal dessa palavra tão grande e simultaneamente tão pequena como é a ‘migrações’, quando se a conhece na primeira pessoa. A final do post deixo o teor integral dessa intervenção, alinhavado com valiosa ajuda desta pitinha aqui.
Os órgãos de comunicação social gostam de citar os políticos quando eles falam em ‘temas fracturantes na sociedade’, o debate sobre o aborto, o dos direitos de algumas minorias, etc, e até me lembro de certo verão em que, por mais bimbo que hoje o pareça, a discussão sobre a utilização do preservativo no sexo 'one night stand' alcançou o tal patamar dos tropeções éticos e engasgos de vozes públicas, o de ‘tema fracturante da sociedade’.
Neste hoje, em que nos afogamos com arrastões e outro peixe miúdo que mais não arrastam que sentimentos xenófobos e racistas para a crosta da sociedade, as migrações são um dos tais, dos fracturantes. Pois se até o Vice-rei Bobo, D. Jardim, sobre ele se debruça e cospe os seus perdigotos...
É-o porque a integração dos imigrados é uma miragem e negar os problemas que existem, pela sua ausência nascidos, é pôr a tal peneira a tapar uma luz que ninguém pode ousar dizer que está tão baça que não a vê. Terá acontecido o mesmo com os ‘nossos’ tios e seus filhos, na França dos anos 60’s e seguintes? Eles ou seus filhos, representaram um problema social de integração nas sociedades de acolhimento, foram ‘fracturantes’? actualmente, já muito para além do hexágono, também numa Suiça, Alemanha, Grã-Bretanha, outro país qualquer pois continuamos fervorosos da (nossa) emigração proporcionalmente à aversão que demonstramos à imigração (dos outros)?
Até na ex-África colonial lusa, onde, pelo que ouço, a maioria dos nossos emigrantes - lá imigrantes de luxo se comparados com os que cá temos, vivem entre si em condomínio fechado, soberbamente à margem das sociedades e cultura locais, e sem procurarem uma integração que vá mais além do recriar e reviver do velho fausto colonial, modernizadamente encoberto, protegido das novas elites pois é fonte de negócios e negociatas e ponte para com a ex-metrópole que ora exerce fascínios consumistas mil? Migração é mesmo tema fracturante, seja ele visto de que ângulo for...
Recentrando-me no tema e atenta a abordagem proposta, entendi dele falar numa leitura positiva, e felizmente os meus colegas de intervenção pouco oscilaram na mesma opção. Se o mote de falar de mim e das minhas migrações era entendido como viável e até útil, o não ser estrondoso exemplo de sucesso pessoal também não afasta a verdade de não o ser de insucesso ou de problema de integração. E com essa bússola apontando a rumos positivos redigi a minha intervenção, afinal foi assim que todos traçamos passos e redigimos as nossas intervenções.
Está esquisito o discurso? Adjectivado sem modéstias e prenhe de exagero, do início ao final? Fiquem para ler o resto, por favor.
Primeiro, senti-me útil; segundo, acompanhado; terceiro, realizado e, quarto e final, li nos olhos da minha família mais próxima coisas que não conto mas que vocês adivinharão. Vou tentar…
Fora convidado pelo Jorge Viegas a participar num colóquio num incerto ‘centro comunitário’ da Qtª do Conde, em que o tema a debate seria “Migrações”... ‘- O quê? e em que é que eu posso, com esse tema, dizer algo que valha a pena? nem penses! – Fala de ti, Gil. É o suficiente, fala da tua experiência”.
E pronto, passado o tempo dos resmungos abandonei-os e dei-me ao trabalho, e escrevi sobre a minha visão pessoal dessa palavra tão grande e simultaneamente tão pequena como é a ‘migrações’, quando se a conhece na primeira pessoa. A final do post deixo o teor integral dessa intervenção, alinhavado com valiosa ajuda desta pitinha aqui.
Os órgãos de comunicação social gostam de citar os políticos quando eles falam em ‘temas fracturantes na sociedade’, o debate sobre o aborto, o dos direitos de algumas minorias, etc, e até me lembro de certo verão em que, por mais bimbo que hoje o pareça, a discussão sobre a utilização do preservativo no sexo 'one night stand' alcançou o tal patamar dos tropeções éticos e engasgos de vozes públicas, o de ‘tema fracturante da sociedade’.
Neste hoje, em que nos afogamos com arrastões e outro peixe miúdo que mais não arrastam que sentimentos xenófobos e racistas para a crosta da sociedade, as migrações são um dos tais, dos fracturantes. Pois se até o Vice-rei Bobo, D. Jardim, sobre ele se debruça e cospe os seus perdigotos...
É-o porque a integração dos imigrados é uma miragem e negar os problemas que existem, pela sua ausência nascidos, é pôr a tal peneira a tapar uma luz que ninguém pode ousar dizer que está tão baça que não a vê. Terá acontecido o mesmo com os ‘nossos’ tios e seus filhos, na França dos anos 60’s e seguintes? Eles ou seus filhos, representaram um problema social de integração nas sociedades de acolhimento, foram ‘fracturantes’? actualmente, já muito para além do hexágono, também numa Suiça, Alemanha, Grã-Bretanha, outro país qualquer pois continuamos fervorosos da (nossa) emigração proporcionalmente à aversão que demonstramos à imigração (dos outros)?
Até na ex-África colonial lusa, onde, pelo que ouço, a maioria dos nossos emigrantes - lá imigrantes de luxo se comparados com os que cá temos, vivem entre si em condomínio fechado, soberbamente à margem das sociedades e cultura locais, e sem procurarem uma integração que vá mais além do recriar e reviver do velho fausto colonial, modernizadamente encoberto, protegido das novas elites pois é fonte de negócios e negociatas e ponte para com a ex-metrópole que ora exerce fascínios consumistas mil? Migração é mesmo tema fracturante, seja ele visto de que ângulo for...
Recentrando-me no tema e atenta a abordagem proposta, entendi dele falar numa leitura positiva, e felizmente os meus colegas de intervenção pouco oscilaram na mesma opção. Se o mote de falar de mim e das minhas migrações era entendido como viável e até útil, o não ser estrondoso exemplo de sucesso pessoal também não afasta a verdade de não o ser de insucesso ou de problema de integração. E com essa bússola apontando a rumos positivos redigi a minha intervenção, afinal foi assim que todos traçamos passos e redigimos as nossas intervenções.
Antes, houvera o convívio com tantos amigos que já não via há largos meses. O Viegas e a mulher, Arnalda, o Delmar Maia Gonçalves e a mulher, a artista plástica Filipa Gonçalves, o Renato Graça e o Manuel Matsinhe, a Elsa de Noronha e a Paula Ferraz, e um amigo muito especial que leio diariamente mas que muito raramente tenho tido oportunidade para gozar o seu convívio: este, que não perde vez nem meia linha para, exagerando, dar-me mimos que me sabem bem, guloso crónico que sou. E aproveitar para conhecer outros, como a doce Olga Santos que a final do meu ‘discurso’ brindou-me com as suas lágrimas e um beijo, dando-me as palavras mais bonitas de todas ao dizer que encontrara um irmão. Como é possível que eu, campino sem cavalo e saco de saudades eternamente por saciar, não me sinta içado a pedestal de homem válido, de ideias e palavras úteis, se outros que admiro por obra e fama dizem-mo, com lágrimas bonitas em sorrisos que nunca poderei esquecer?
E houve ‘Nora Villar’. Houve a minha irmã, a minha Milly, a outra parte de mim que há meio século luta por libertar de dentro duma ‘vidinha’ o tanto, a tanta ternura, a artista que em si vive quase sempre amordaçada. Soltou-se, como que aproveitando a deixa das migrações falou da sua, expôs a intimidade de tantos anos de silêncio. Foi comovente, especialmente para mim que tanto dela espero e há tanto tempo. Foi-o também para todos pois as palmas não se regatearam, especialmente da moderadora do colóquio, a vereadora da cultura da câmara de Sesimbra e também escritora, Felícia Costa.
Negativo e frustrante foi não ter havido oportunidade para debate com a assistência, pois os oradores foram muitos e o relógio castigou-nos. Ficou portanto um travo de falta, de pouco para o tanto que o tema trás para debate. Outra oportunidade? com certeza, até porque ficou prometido pela edilidade promotora. Eu não faltarei.
Deixo agora o texto integral da minha intervenção. Vale o que vale, vale sinceridade e emoção, únicas armas que tinha e não fiz pejo em usar face às minhas carências em trazer outra valia ao debate.
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“Primeiro devo dizer-vos que de migrações pouco sei além das minhas, algumas foram, e delas passo a contar.
Andava na antiga primeira classe, na Covilhã, quando os meus pais decidiram migrar em perseguição do sonho africano, crendo que a assunção do mito do império nos daria uma vida mais distante da modéstia do dia-a-dia sempre curto. Era a esperança noutro viver.
Há erros que vêm por bem, e por via desta ilusória rota das caravelas eu e minha irmã recebemos o bafo de África, quente, terno e sensual.
Essa foi a minha primeira migração, e por ela cresci como enxerto colonial na frondosa árvore africana.
Quando acreditava que conseguia escalar todos os seus ramos, e no mais alto faria o meu ninho, um dos grandes ciclos da História faleceu de caduco e, no seu ruir que gerou vagas impiedosas ao pormenor humano, eu migrei novamente.
Regressei a este Norte que vi e bebi como gélido, reconstruindo-me nesta pele que então vesti, encasacada em tanto que me era estranho, hostilmente diferente da tropical sedução que abandonara.
Como a idade era outra, e da troca não entendi vantagens que fossem além duma mítica segurança, a minha segunda migração teve dores que ainda hoje me murmuram saudades doutro que fui.
Cresce-se, acasala-se, ambienta-se. Nas dúvidas inventam-se certezas. No amadurecer descobrem-se seivas que ajudam a sorver o quotidiano.
Do bi-migrado constrói-se o integrado; mas quando os dias empalidecem e as noites correm lentas, os olhos encontram na memória cantos e cantares que não morreram.
Da árvore que trepei, sonhando o cimo da sua copa, sobra em silêncio uma lágrima que não a esquece.
Por vezes costumo dizer, a título de desabafo apressado aos que me questionam sobre a minha dualidade de sentimentos – europeu por nascimento e posterior adopção, africano por vivência e paixão, que quem foi beijado por África nunca de tal beijo se esquece.
Eu não fui beijado, foi mais profundo. Fui seduzido em corpo e emoção, e desse amar violento guarda a memória carícias de que não me evado nem emigro, é tão envolvente como o é uma paixão.
E que se vive no remanso do silêncio, até um dia…
Quando pensava que o ciclo estava completo, e as cãs induziam a um manso Outono, nasceu a terceira migração.
Evadi-me ao quotidiano, despi-me de mantas e de anos e renasci noutro, sendo que dele não houvera prévia noção.
Pela palavra reconstruí-me e nela encontrei novo abrigo, viajei dentro de mim e saltitei feliz na sua construção. Migrei para um mundo novo onde a árvore é tão bela e tão frondosa, que leio-me incapaz de dela colher todos os seus encantos. Sonhei-me ‘escritor’ e consegui alcançar o ramo de ‘autor’.
Este é o meu terceiro país, de todos o passaporte que beijo com mais calor, pois nele coexistem os outros e todos os mais que eu queira, reais ou imaginários.
É finalmente a árvore cuja sombra me dá descanso, são as folhas que me cobrem e afagam os frios da vida, os frutos que alimentam o já premente empalidecer.
É este o meu mundo. Migrei para a palavra e nela leio a minha nacionalidade, nela recrio e releio todas as outras do passado. Migrando pela vida, construí a minha realidade.
Entre outros significados, o dicionário aponta à palavra ‘migração’ o de: “viagem de dois sentidos, feita por certos animais em épocas periódicas e regulares”. Acho que cumpri a definição.
Sem deixar para trás traições ou desamores, completei o círculo e por acidente histórico regressei à minha terra de origem, de onde migrara no tempo dos calções e dos joelhos esfolados. Finalmente, em construção escrita tracei passos e estendi carícias, nos seios da escrita alimento o respirar do ocaso.
Parecerá soberba, mas atrevo-me a dizer que pelas migrações realizei-me, e hoje e por elas reclamo lugar ao meu sorrir.
Termino com uma dúvida: vivemos nas ilusões que criamos ou, migrando nelas, recriamos o viver? ao encontro da nossa própria sombra, da nossa árvore?"
2 Comments:
E assim temos um homem com dois cordões umbilicais e a "produzir" o terceiro... e ainda fica admirado, humildemente, dos elogios merecidos dos que o sabem apreciar, que são todos os que o lêem. Um beijo da admiradora primeira, th
Com tantos elogios ainda pensa que é verdade...
E é verdade verdadinha... Que bom seres meu amigo...
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