O sangue nas revoluções: a memória e o seu respeito
Excerto extraído duma discussão num Grupo MSN de ex-residentes em Moçambique:
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"As revoluções, qualquer uma, são sempre as ocasiões dos excessos, sob pretextos históricos há injustiças que se cometem, actos que, se isolados do contexto que os gerou - ou lhes deu cobertura e impunidade - seriam unanimemente considerados crimes e receberiam o opróbrio social, a sua censura, o seu castigo. A história é cega ao pormenor individual quando liga o seu grande motor colectivo.
7 de Setembro e 21 de Outubro de 1974 foram datas de horror para quem delas recorda a sua face inumana, a bestialidade que nelas campeou. Para além das eternas discussões ideológicas dos 'dois lados' então em liça - e que acredito serem perpétuas enquanto houver vivos que as recordem... , houve vítimas mortais em ambos os campos em confronto e há que ter sensibilidade para respeitar essa memória, no caso de famílias e amigos acresce a dor. A história quando molha o aparo em sangue, para quem a viveu, nunca poderá ser lida em termos de 'ganhei' ou 'perdi'. Há mais, há sentimentos, e isso é Humano.
Numa leitura isenta de sentimentos personalizados vemos que na página que narra o '7 de Setembro' haverá nota de rodapé ou pouco mais que fale nos que morreram, pois a grandiosidade da data para quem tem legítimo orgulho na sua nacionalidade e sabe e aprende que aquela foi uma data nuclear para a sua existência, necessariamente menoriza tudo o mais face àquele outro valor, indubitavelmente mais importante enquanto facto histórico, pedra importante que foi no alcançar da Independência e nascimento da sua Nação. A História é fria, pouco dada ao sentimento das vítimas quando "outros valores mais altos se sobrepõem". Eis a realidade.
Sobre as origens e motivações, o erro político do 'golpe do Rádio Clube', até dos excessos que foram cometidos à sombra desse movimento pouco sensato, essa é discussão cíclica e sem solução à vista, sendo que, de ano para ano e sempre que se chega à data, tudo é dito e discutido, há ódios adormecidos que ressurgem, felizmente alguns arrependimentos pelo meio em que se confessa que se foi arrastado por febre de multidões, mas daí a quinze dias está tudo esquecido, volta tudo às posições iniciais sem ceder um centímetro e... para o ano há mais. É triste.
Porque a nossa idade é hoje outra, e se aos dezasseis e aos vinte e até aos trinta tinha-se uma impulsividade gerada pela idade, que era confrontada com ameaças radicais ao estilo de vida que se tinha, hoje com mais trinta anos em cima, com quarentas, cinquentas e sessentas, temos todos a obrigação de olhar para o passado e para essas datas com outros olhos, mais prudentes, mais sabedores até pois então vivia-se em cidades cristalizadas onde quem quisesse fazia uma vida inteira sem ser obrigado a olhar com olhos de ver para além da sua redoma, e vendo então que o Paraíso era um imenso logro sustentado à custa dum povo explorado por outro. A velha questão do colono e do colonizado, nunca haverá acordo entre eles sobre as visões da mesma realidade...
Em termos friamente históricos o '7 de Setembro' foi uma vitória do povo moçambicano, que assegurou uma independência não neo-colonial, disse não a uma segunda Rodésia.
Para quem o viveu e assistiu essa mesma data nunca poderá ser despida do trauma que lhe infligiu, pois a barbaridade é sempre gratuita e nada há que a justifique.
Duas visões em oposição, coexistindo mesmo em muitos de nós. Porque somos racionalmente inteligentes para perceber a História e os seus ciclos, mas felizmente suficientemente humanos para estremecer e chorar quando ela tritura inocentes, no seu resfolegar revolucionário.
Quanto ao 21 de Outubro foi barbárie pura, em minha particular opinião mais sangrento que a outra data. Deste, 21/10, felizmente a História não sugere nem deixa conflito com efeméride, é mesmo das suas páginas negras.
Lamento ter escrito isto tudo, mas ano a ano continua a doer ler, reler, recordar, sentir. A trinta anos de distância regozijo-me maioritariamente com a data pois o tempo muito cura ou atenua. Mas, à data, às datas, eu tive muito medo e 'envelheci' prematuramente muitos sonhos que mereciam um crescer mais suave. E isso não o consigo esquecer. Obrigado por teres lido até aqui."
7 de Setembro e 21 de Outubro de 1974 foram datas de horror para quem delas recorda a sua face inumana, a bestialidade que nelas campeou. Para além das eternas discussões ideológicas dos 'dois lados' então em liça - e que acredito serem perpétuas enquanto houver vivos que as recordem... , houve vítimas mortais em ambos os campos em confronto e há que ter sensibilidade para respeitar essa memória, no caso de famílias e amigos acresce a dor. A história quando molha o aparo em sangue, para quem a viveu, nunca poderá ser lida em termos de 'ganhei' ou 'perdi'. Há mais, há sentimentos, e isso é Humano.
Numa leitura isenta de sentimentos personalizados vemos que na página que narra o '7 de Setembro' haverá nota de rodapé ou pouco mais que fale nos que morreram, pois a grandiosidade da data para quem tem legítimo orgulho na sua nacionalidade e sabe e aprende que aquela foi uma data nuclear para a sua existência, necessariamente menoriza tudo o mais face àquele outro valor, indubitavelmente mais importante enquanto facto histórico, pedra importante que foi no alcançar da Independência e nascimento da sua Nação. A História é fria, pouco dada ao sentimento das vítimas quando "outros valores mais altos se sobrepõem". Eis a realidade.
Sobre as origens e motivações, o erro político do 'golpe do Rádio Clube', até dos excessos que foram cometidos à sombra desse movimento pouco sensato, essa é discussão cíclica e sem solução à vista, sendo que, de ano para ano e sempre que se chega à data, tudo é dito e discutido, há ódios adormecidos que ressurgem, felizmente alguns arrependimentos pelo meio em que se confessa que se foi arrastado por febre de multidões, mas daí a quinze dias está tudo esquecido, volta tudo às posições iniciais sem ceder um centímetro e... para o ano há mais. É triste.
Porque a nossa idade é hoje outra, e se aos dezasseis e aos vinte e até aos trinta tinha-se uma impulsividade gerada pela idade, que era confrontada com ameaças radicais ao estilo de vida que se tinha, hoje com mais trinta anos em cima, com quarentas, cinquentas e sessentas, temos todos a obrigação de olhar para o passado e para essas datas com outros olhos, mais prudentes, mais sabedores até pois então vivia-se em cidades cristalizadas onde quem quisesse fazia uma vida inteira sem ser obrigado a olhar com olhos de ver para além da sua redoma, e vendo então que o Paraíso era um imenso logro sustentado à custa dum povo explorado por outro. A velha questão do colono e do colonizado, nunca haverá acordo entre eles sobre as visões da mesma realidade...
Em termos friamente históricos o '7 de Setembro' foi uma vitória do povo moçambicano, que assegurou uma independência não neo-colonial, disse não a uma segunda Rodésia.
Para quem o viveu e assistiu essa mesma data nunca poderá ser despida do trauma que lhe infligiu, pois a barbaridade é sempre gratuita e nada há que a justifique.
Duas visões em oposição, coexistindo mesmo em muitos de nós. Porque somos racionalmente inteligentes para perceber a História e os seus ciclos, mas felizmente suficientemente humanos para estremecer e chorar quando ela tritura inocentes, no seu resfolegar revolucionário.
Quanto ao 21 de Outubro foi barbárie pura, em minha particular opinião mais sangrento que a outra data. Deste, 21/10, felizmente a História não sugere nem deixa conflito com efeméride, é mesmo das suas páginas negras.
Lamento ter escrito isto tudo, mas ano a ano continua a doer ler, reler, recordar, sentir. A trinta anos de distância regozijo-me maioritariamente com a data pois o tempo muito cura ou atenua. Mas, à data, às datas, eu tive muito medo e 'envelheci' prematuramente muitos sonhos que mereciam um crescer mais suave. E isso não o consigo esquecer. Obrigado por teres lido até aqui."
5 Comments:
Obrigado por teres escrito isto, Carlos.
É um texto de grande honestidade e humanidade.
Eu não estava em Moçambique em nenhuma das duas datas mas posso compreender o que sentiste e aqui transmites.
Creio que sem o episódio do Radio Clube a transição poderia ter sido menos traumática e mais pessoas teriam cá ficado em vez de sairem de Moçambique.
Machado
Parabéns por estas palavras tão fluidamente simples - sem que tenham alguma coisa de simples - e obsjectivas.
Abraços meu caro amigo Carlos Gil
Eugénio Almeida
Foi uma aventura de um grupo de pessoas, quando já se sabia que não se podia travar a história.
O tempo apagou muitas cicatrizes, mas muitas aventuras ficaram por contar. Porque as houve, de qq lado da barricada.
As posições estavam extremadas por falta de informação. Todos sabiamos muito pouco, mas pensávamos que sabiamos tudo.
Eu estive lá. Numa barricada. Da que ganhou a nacionalidade.
O 7 de Setembro visto a esta distância, não faz sentido. Mas é importate reflectir sobre o acontecimento.
Parabéns pelo blog. É importante haver blogues assim.
BOM POST!! - muf'.
Ainda que só agora, não posso deixar de dizer que gostei imenso da sua descrição emotiva dos acontecimentos de 7 de Setembro de 1974. Nessa data, assisti perplexo às manifestações de alegria de alguns pelo assalto ao Rádio Clube e posteriores acções de violência indiscriminada nos bairros de caniço, fui voluntário no Hospital Central de Maputo (ex-Miguel Bombarda) quando pediram que todos que quisessem ajudar, para lá se dirigissem, devido ao afluxo contínuo de feridos e mortos (de ambos os lados da contenda) e ainda hoje guardo na memória imagens horríveis que não consigo esquecer.
Ainda que tenha ganho a minha nacionalidade, com os acontecimentos posteriores de 21 de Outubro acabo por pensar que também perdemos todos um pouco de humanidade, de sonho, de amizade e até de família, que acabaram divididas.
Parabéns pelo blog e um abraço
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