Cinto de segurança, com fecho em MB
Uma opinião, um contributo, antipático. Há que o ser, se necessário. E que gira à volta do seguinte:
Tenho em mim que a soma das multas por infracções ao Cód. da Estrada não debitadas e portanto não cobradas, formam um bolo com volume suficiente para abastecer a paupérrima mesa onde o Orçamento de Estado faz figura de sopa dos pobres, com valor suficiente para equilibrá-lo e até com sobras para uns luxos. Claro que não duraria mais de dois anos esta colecta-dilúvio, e aí é que está a graça e o verdadeiro lucro.
Nesta tragédia cívica de conduzir em Portugal, os que o fazem fazem gala em prevaricar por dá cá aquela palha, puro vício filho do desleixo, e os que ainda não conduzem estão psicologicamente formatados para seguir a moda esmerando-se, e pelam-se pela 'carta' para poderem ser iguais ao pai e ao tio, ao vizinho e ao amigo, a todos os seus heróis conhecidos e desconhecidos que lhe dão as aulas de código que considera verdadeiramente importantes.
É uma tragédia que, directamente, tornou o país não ardido noutras cinzas se calhar até mais tristes e cinzentas que aquelas que ainda fumegam, ora que a sua saisson está a terminar. Que moldaram a serpentina das estradas numa distorcida escola de xicos-espertos, com distribuidores de senhas para as urgências hospitalares em cada curva excedida, em cada ultrapassagem desnecessária, em cada acto homicida e suicida que não aconteceria se, simplesmente, houvesse outra forma de pensar, outra mentalidade. Cada quilómetro é um número de roleta que nos aproxima da urgência, e talvez provenha daí a pressa cega em chegar rapidamente e custe o que custar a qualquer outro à nossa meta, à cirurgia de último recurso. Uma mentalidade, a letra do nosso fado que cantarola a miséria e que de boca em boca, de geração em geração, perpetua este correr insensato, este abuso de todos e de tudo como forma de viver.
Por força da farta colheita de coimas, que faria jus à penalização da inconsciência infractora como forma despreocupada de estar e viver, essa mentalidade era forçada a mudar. Reparem: não falo de se ser multado por uma infracção em cem, uma em vinte, uma em cinco. Falo num cenário ideal em que há infracção e a multa é automática*. Elas são escalonadas segundo o descuido ou o abuso, são pequenas para aquele mas severas para este. Para a pequena infracção, o descuido, o arrombo pecuniário é pequeno. Mas se praticado como forma de viver ele cresce proporcionalmente, e nenhum orçamento lhe é indiferente. Aí o comportamento muda, e com ele a mentalidade.
A sinistralidade evapora-se, acredito e juro. Incluindo a comportamental que transformou cada sector da sociedade, cada pólo de cidadania ou de economia, ou de ou de, numa urgência, em tantos casos também ela ardida, servindo as suas cinzas de placebo enganador para os que gritam a dor. A de cada verão num horror em fogo, cada inverno noutro doutra coisa qualquer, os anos arrastando-se num suplício de viver baixando os olhos, quase envergonhado, quando se murmura aos dias que passam "eu sou português".
Falo num cenário ideal, eu sei*. Mas bastavam dois anos para as contas se acertarem, incluindo as da grande dívida que nós, prevaricadores de mentalidade, temos com o sucesso adiado, com o gorar de futuros que deixamos em legado aos que ainda só ambicionam a sua 'carta'.
Conta quem disso sabe que lá fora grassa também a crise, e que não há sociedade que não a sinta. Eu, que daqui não saio nem por bem nem à força, acredito mas não retiro consolo. Pois vejo e adivinho que a nossa tem outro ovo, outra cor e outro cheiro, tresanda a irresponsabilidade, à ilógica do abuso, à mentalidade que nos adia a felicidade de bem proceder. Por aí, cá, a crise é mais dura pois falta-lhe muda de fronhas à almofada do bem pensar que gera o bem fazer. A mentalidade. Esta almofada que temos está demasiado suja e é perigosamente insegura para circularmos assim, inseguros, atropelando no código tudo e todos, seja nas estradas seja nas florestas, seja nos impostos ocultados ou nos subsídios desviados, seja em que letra for deste fado de mal viver.
Dois anos chegavam. Faça-se das tripas moedas por dois anos, e rapidamente veremos no espelho que engordamos e, melhor ainda, até as florestas deixam de arder.
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* Só é realizável em acto voluntário do prevaricador. Não falo na 'humilhação' de se apresentar às autoridades - "ó sôr guarda, acabei de, etc, passe-me lá o papelinho se faz favor", mas do acto nobre de reconhecer o erro e, dignamente, ir a uma caixa MB e endereçar a sua coima à instituição carente de verbas, à escola onde andou ou andam os seus filhos, ao hospital que o tratou ou, espera-se então com legítima esperança, por acidente nunca o virá a tratar.
Dois anos. E reparem que o mais bonito, a verdadeira vitória, era a de os depósitos serem poucos, porém verdadeiros.
Só será irreal se o quisermos assim, eu também o sei e foi por isso que assim escrevi.
1 Comments:
Isto, Sr. Gil, de sonhar acordado, dá posts destes..., mas que era BOM, era...th
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