Prevaricar - I
Ao serão fui ao meu café habitual e estava lá o Roque. Com uma bezana do caixão à cova como se costuma dizer. Nada que não seja habitual nele, vou acrescentando. Como tinha levado o portátil fui escrevendo enquanto pelo canto do olho o mirava, não fosse embirrar comigo pois o Roque, às vezes, tem "mau vinho".
E fiz um texto, claro, razão deste primeiro prevaricanço ao mui douto despacho de silêncio que recebi a fls. do blogue. Como o grosso do trabalho está feito - só faltava esta nota introdutória e justificatória - é sem grandes conflitos de consciência que meto um novo post, neste caso sobre um "cromo" cá da terra, afinal só um igual a milhares que há por aí; não há aldeia ou lugarejo que não tenha o seu... Aqui vai:
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As vidas do Roque
21:47. Ao balcão está o Roque que eu já não via há meses. Está completamente bêbado e oscila perigosamente, os olhos vítreos vagueando pela sala quase vazia em busca de quem lhe dê atenção. Por vezes eleva o seu falar sozinho e o seu tema recorrente percebe-se na algaraviada bêbada em que se perde: a guerra colonial. Há mais de vinte anos que conheço o Roque e até já lhe aturei algumas bebedeiras e o tema não varia, sempre a guerra colonial. Diz-se por aqui que ele veio de África maluco, apanhadinho da cabeça. Que começou a beber desalmadamente quando foi desincorporado após quatro anos de Força Aérea. Eu, que vim depois, já o conheci assim. Bêbado e louco. Quantas estórias há para contar acerca do Roque, das maluqueiras do Roque…
“Sentido! É pá! Sentido!” o seu vozeirão eleva-se e a sua mão volta a agarrar o copo de cerveja que morre aos pinguinhos em cima do balcão. Ele não precisa de beber mais para ficar bêbado. Será um dos tais doentes do álcool que com dois copos ficam logo estragados, alcoolizados. E, hoje e pelo que nele vejo, a conta já se perdeu muito para além do que os seus passos dançantes saberão tropeçar.
Antes de estar reformado foi funcionário público e trabalhava em Santarém no Instituto de Emprego. Calhava que, querendo falar-se com ele no período pós almoço, esse intuito só era possível de se atingir indo ao seu gabinete nessa parte nobre do horário à causa pública: a taberna do Quinzena, sita perto do IEFP, onde ele e o Madeira, seu colega de ofício e de amores líquidos, almoçavam religiosamente todos os santos dias de labuta, estendendo os digestivos ao correr do relógio de ponto. Era lá, no Quinzena, entre pataniscas e jaquinzinhos, mais um jarrito de tinto, que se tratava de certidões, etc. Depois reformou-se, e o Madeira, consta, não lhe resistiu muito mais e tornou-se abstémio por falta de quórum, sucedendo-lhe ao fim duns tempos como fiel leitor de correspondência da Caixa Nacional de Pensões. Há quem diga que a sorte do Madeira foi o Roque ter-se reformado, assim curou-se desse afogar inevitável para que caminhava todas as tardes de segunda a sexta-feira. E a sorte do Roque, onde é que se perdeu? Em que savana ou picada a deixou? O Quinzena lá continua, a mobília e a fauna renovam-se mas sempre com aquele ar de tasca e de bêbados castiços que faz as delícias dos turistas pelas bandas scalabitanas. Certa vez até mereceu honras de visita e de almoço dum Presidente no activo, por acaso o tal que agora quer repetir dose sem que colha muitos entusiasmos à volta da ideia. Quem sabe se com uma visita ao Quinzena, um magusto à maneira e meia litrada no bucho, não reconsidera intentos e torna-se de vez colega do Madeira e do Roque – falo de reformas, é claro.
Que me lembre a última vez que me rira com o Roque foi logo após ter saído no jornal local uma reportagem sobre o seu julgamento por condução embriagado, pluri reincidente, com uma daquelas taxas que faz as delícias de jornalistas desocupados. Dizia o ilustre libelo que o dito cujo se arrependera de todos os males cometidos aqui e aquém mar, jurara pelos netos que ia deixar de beber e comprometera-se a deixar de conduzir durante os meses de castigo que, sabia-o e declarava aceitar, lhe calhariam em sentença. Ora bem, estava eu naquela tarde de domingo no passeio em frente ao café a remoer o almoço e no dolce fare niente, quando passa à minha frente o Renault 5 do Roque com o próprio, claro está, ao volante. Pelo caminho que seguia ia para a bola e a gargalhada foi geral em todos os que assistimos à sua gloriosa passagem, indiferente aos trânsitos em julgado de sentenças que ignoram os grandes e os pequenos prazeres da vida. Sabendo nós que o campo de futebol estava e está entrincheirado entre as tascas do Batista e do Botas, pelo sim pelo não servido com bar interno e com mais uns outsiders bem localizados na vizinhança, o resultado do jogo era público e não constituía segredo: a pretexto de vitória, derrota ou empate, a bebedeira era certa e o Roque não abandonaria o campo sem ser em glória e ao volante do velho chaço.
Neste entretanto em que conto o que dele me vou lembrando ele já recolheu à rua, pelo sentido dos passos vai para casa. Se não houver desvios não há riscos pelo caminho pois são ruas de pouco movimento e ele não mora longe. Nem há mais cafés ou tabernas no trilho mais directo até casa. Poderá aproveitar a passagem pela igreja e nela recolher cansaços e montar apeadeiro até chegar à cama. Sei lá. O Roque é maluco, sabe-o qualquer um que por aqui more, e os caminhos dos loucos são tão imprevisíveis como criativos.
Conta-se, - de tal não sei pois sou ainda novo por aqui – que, certa vez, vinha o Roque de Santarém montado no seu belo carrinho e numa bebedeira não menos bonita, quando à saída da velha ponte deu de caras com uma operação ‘stop’ da GNR local. Ora a última das suas vontades seria parar e portanto esmerou-se em acelerar a caminho de Almeirim, crente nas delícias da protecção da sua terra de sempre e, também, em que facilmente venceria o despique como o tradicional velho e gasto jeep dos gêeneérres. Dito e feito, cortou meta isoladíssimo e assim passou em frente ao decano dos cafés da terra, o ‘Império’, onde nas noites de verão se juntam na sua esplanada os grupos de sempre, clientes da casa desde o tempo em que lá iam comprar pirolitos. O Roque achou que a vitória estava insonsa e não foi de modas: mesmo em frente à esplanada tratou de fazer um vistoso peão e sentou-se em cima do capôt, de braços cruzados e cara patibular fixa na linha negra da estrada que vem da Tapada, à espera dos derrotados, os eternos segundos classificados desta sua velha competição. Não me lembro se me contaram o desfecho mas ele também pouco interessa. Não é uma multa ou uma noite mal dormida que destrói o mito dum cromo local. A pequena história desta terra também passa pelas suas figuras típicas, ‘os cromos’, e o Roque é um deles para uma geração inteira. O pormenor da guerra colonial, infelizmente, pouco é referido. Justa ou injustamente não sei, pois também não há quem possa garantir que se ele tivesse feito tropa na Ajuda ou no arsenal do Alfeite não seria o que é militantemente hoje. Mas estala-me a dúvida sempre que o vejo em seu estado de graça, o linguarejar de bêbado gritando: “Sentido! É hoje!” e o olhar perdido não sei onde, os olhos brilhantes e fixos, alcoolicamente fixos na merda do passado que teve de gramar.
Boa sorte Roque, que encontres sempre facilmente o caminho para a tua cama, para o teu sossego. Mata de vez a tua guerra e esquece a outra por favor. Terão sido siamesas, acredito, mas tantos anos e copos depois está na altura de enterrares ambas.
21:47. Ao balcão está o Roque que eu já não via há meses. Está completamente bêbado e oscila perigosamente, os olhos vítreos vagueando pela sala quase vazia em busca de quem lhe dê atenção. Por vezes eleva o seu falar sozinho e o seu tema recorrente percebe-se na algaraviada bêbada em que se perde: a guerra colonial. Há mais de vinte anos que conheço o Roque e até já lhe aturei algumas bebedeiras e o tema não varia, sempre a guerra colonial. Diz-se por aqui que ele veio de África maluco, apanhadinho da cabeça. Que começou a beber desalmadamente quando foi desincorporado após quatro anos de Força Aérea. Eu, que vim depois, já o conheci assim. Bêbado e louco. Quantas estórias há para contar acerca do Roque, das maluqueiras do Roque…
“Sentido! É pá! Sentido!” o seu vozeirão eleva-se e a sua mão volta a agarrar o copo de cerveja que morre aos pinguinhos em cima do balcão. Ele não precisa de beber mais para ficar bêbado. Será um dos tais doentes do álcool que com dois copos ficam logo estragados, alcoolizados. E, hoje e pelo que nele vejo, a conta já se perdeu muito para além do que os seus passos dançantes saberão tropeçar.
Antes de estar reformado foi funcionário público e trabalhava em Santarém no Instituto de Emprego. Calhava que, querendo falar-se com ele no período pós almoço, esse intuito só era possível de se atingir indo ao seu gabinete nessa parte nobre do horário à causa pública: a taberna do Quinzena, sita perto do IEFP, onde ele e o Madeira, seu colega de ofício e de amores líquidos, almoçavam religiosamente todos os santos dias de labuta, estendendo os digestivos ao correr do relógio de ponto. Era lá, no Quinzena, entre pataniscas e jaquinzinhos, mais um jarrito de tinto, que se tratava de certidões, etc. Depois reformou-se, e o Madeira, consta, não lhe resistiu muito mais e tornou-se abstémio por falta de quórum, sucedendo-lhe ao fim duns tempos como fiel leitor de correspondência da Caixa Nacional de Pensões. Há quem diga que a sorte do Madeira foi o Roque ter-se reformado, assim curou-se desse afogar inevitável para que caminhava todas as tardes de segunda a sexta-feira. E a sorte do Roque, onde é que se perdeu? Em que savana ou picada a deixou? O Quinzena lá continua, a mobília e a fauna renovam-se mas sempre com aquele ar de tasca e de bêbados castiços que faz as delícias dos turistas pelas bandas scalabitanas. Certa vez até mereceu honras de visita e de almoço dum Presidente no activo, por acaso o tal que agora quer repetir dose sem que colha muitos entusiasmos à volta da ideia. Quem sabe se com uma visita ao Quinzena, um magusto à maneira e meia litrada no bucho, não reconsidera intentos e torna-se de vez colega do Madeira e do Roque – falo de reformas, é claro.
Que me lembre a última vez que me rira com o Roque foi logo após ter saído no jornal local uma reportagem sobre o seu julgamento por condução embriagado, pluri reincidente, com uma daquelas taxas que faz as delícias de jornalistas desocupados. Dizia o ilustre libelo que o dito cujo se arrependera de todos os males cometidos aqui e aquém mar, jurara pelos netos que ia deixar de beber e comprometera-se a deixar de conduzir durante os meses de castigo que, sabia-o e declarava aceitar, lhe calhariam em sentença. Ora bem, estava eu naquela tarde de domingo no passeio em frente ao café a remoer o almoço e no dolce fare niente, quando passa à minha frente o Renault 5 do Roque com o próprio, claro está, ao volante. Pelo caminho que seguia ia para a bola e a gargalhada foi geral em todos os que assistimos à sua gloriosa passagem, indiferente aos trânsitos em julgado de sentenças que ignoram os grandes e os pequenos prazeres da vida. Sabendo nós que o campo de futebol estava e está entrincheirado entre as tascas do Batista e do Botas, pelo sim pelo não servido com bar interno e com mais uns outsiders bem localizados na vizinhança, o resultado do jogo era público e não constituía segredo: a pretexto de vitória, derrota ou empate, a bebedeira era certa e o Roque não abandonaria o campo sem ser em glória e ao volante do velho chaço.
Neste entretanto em que conto o que dele me vou lembrando ele já recolheu à rua, pelo sentido dos passos vai para casa. Se não houver desvios não há riscos pelo caminho pois são ruas de pouco movimento e ele não mora longe. Nem há mais cafés ou tabernas no trilho mais directo até casa. Poderá aproveitar a passagem pela igreja e nela recolher cansaços e montar apeadeiro até chegar à cama. Sei lá. O Roque é maluco, sabe-o qualquer um que por aqui more, e os caminhos dos loucos são tão imprevisíveis como criativos.
Conta-se, - de tal não sei pois sou ainda novo por aqui – que, certa vez, vinha o Roque de Santarém montado no seu belo carrinho e numa bebedeira não menos bonita, quando à saída da velha ponte deu de caras com uma operação ‘stop’ da GNR local. Ora a última das suas vontades seria parar e portanto esmerou-se em acelerar a caminho de Almeirim, crente nas delícias da protecção da sua terra de sempre e, também, em que facilmente venceria o despique como o tradicional velho e gasto jeep dos gêeneérres. Dito e feito, cortou meta isoladíssimo e assim passou em frente ao decano dos cafés da terra, o ‘Império’, onde nas noites de verão se juntam na sua esplanada os grupos de sempre, clientes da casa desde o tempo em que lá iam comprar pirolitos. O Roque achou que a vitória estava insonsa e não foi de modas: mesmo em frente à esplanada tratou de fazer um vistoso peão e sentou-se em cima do capôt, de braços cruzados e cara patibular fixa na linha negra da estrada que vem da Tapada, à espera dos derrotados, os eternos segundos classificados desta sua velha competição. Não me lembro se me contaram o desfecho mas ele também pouco interessa. Não é uma multa ou uma noite mal dormida que destrói o mito dum cromo local. A pequena história desta terra também passa pelas suas figuras típicas, ‘os cromos’, e o Roque é um deles para uma geração inteira. O pormenor da guerra colonial, infelizmente, pouco é referido. Justa ou injustamente não sei, pois também não há quem possa garantir que se ele tivesse feito tropa na Ajuda ou no arsenal do Alfeite não seria o que é militantemente hoje. Mas estala-me a dúvida sempre que o vejo em seu estado de graça, o linguarejar de bêbado gritando: “Sentido! É hoje!” e o olhar perdido não sei onde, os olhos brilhantes e fixos, alcoolicamente fixos na merda do passado que teve de gramar.
Boa sorte Roque, que encontres sempre facilmente o caminho para a tua cama, para o teu sossego. Mata de vez a tua guerra e esquece a outra por favor. Terão sido siamesas, acredito, mas tantos anos e copos depois está na altura de enterrares ambas.
6 Comments:
Eu gostava de encontrar aqui na terra um cromo que desse para contar estória e a soubesse contar tão magnificamente bem como tu contaste esta...th
5 estrelas! Gostei muito. bjo
pensava que a promessa de acabar com a pinga se tivesse dado a quando do casamento do filho, que tambem não durou muito.
curioso nunca ouvi o roque falar de guerra, apenas de politica (se fosse possivel haverem em separado)
Vidas do caraças...beijos.Elsa
Que este artigo seja o recomeço do escritor de encantar, porque há mais personagens nessas paragens e tu sabes do que estou à espera. Vai em frente, Gil! - beijo, muf'.
Excelente texto! O de um olhar atento, por aquilo que se passa para lá de nós... Gostei.
:)
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